TEOGONIA - HESÍODO

 Este livro se compõe da tradução integral da Teogonia de Hesíodo, e do ensaio em que este poema é estudado como um documento do pensamento religioso grego, sob quatro aspectos interligados, a saber:  
1)A noção mítica da linguagem como manifestação divina. As Deusas Musas, filhas de Zeus e de Mnemosýne ("Memória"), manifestam-se no  canto e na dança e em forma de canto e de dança. Elas constituem o  fundamento transcendente dos cantos e, ao mesmo tempo, a garantia divina  da verdade que nesses cantos se revela.  
2)A noção mítica da verdade como "revelações" (alethéa). A epifania das  Musas a Hesíodo coloca em termos míticos o problema lógico e ontológico  da verdade. Entre "muitas mentiras símeis aos fatos", as Musas, quando  querem, sabem dizer a verdade, ou melhor: "revelações" (alethéa). Quem  poderia distinguir entre tais "mentiras" e "revelações"? - Para a piedade  hesiódica, a Verdade é um dom dos Deuses, e assim depende da vontade  deles se ela se apresenta ou não aos homens -, mas, apresentando-se, ela traz  consigo o sinal inequívoco de sua autenticidade: o esplendor divino. Quem  poderia jamais deixar de percebê-lo, se assim querem as Deusas?  
3)A noção mítica do tempo como temporalidade da Presença divina. Os  gregos hesiódicos vivem na proximidade dos Deuses, num tempo cujos dias  não se deixam medir por quaisquer números, pois cada dia então se mostra  com as características e qualidades mesmas do Deus que nesse dia se  manifesta e se comemora.  
4)A noção mítica do mundo como um conjunto único, uno e múltiplo de  teofanias. O mundo, para os gregos hesiódicos, é um conjunto único de  inesgotáveis aparições divinas (teofanias); no entanto, é um mundo lógico,  em termos míticos e na lógica própria do pensamento mítico - um mundo  real e perigoso, que se deixa conhecer através das genealogias divinas, das  linhagens e famílias de Deuses ciosos de suas prerrogativas e vigilantes de  que elas sejam observadas.  
A presente tradução, em versos livres, busca reproduzir não só a riqueza  poética, mas ainda as noções e o movimento próprios do pensamento grego  arcaico. 

Jaa Torrano é professor de Língua e Literatura Grega na Universidade de  São Paulo, e autor de outro grande estudo do pensamento mítico grego: O  Sentido de Zeus: O Mito do Mundo e o Modo Mítico de Ser no Mundo, que  será em breve reeditado pela Iluminuras.  
BIBLIOTECA PÓLEN 
Para quem não quer confundir rigor com rigidez, é fértil considerar que a filosofia não é  somente uma exclusividade desse competente e titulado técnico chamado filósofo. Nem  sempre ela se apresentou em público revestida de trajes acadêmicos, cultivada em viveiros  protetores contra o perigo da reflexão: apropria crítica da razão, de Kant, com todo o seu  aparato tecnológico, visava, declaradamente, libertar os objetos da metafísica do "monopólio  das Escolas". 
O filosofar, desde a antigüidade, tem acontecido na forma de fragmentos, poemas,  diálogos, cartas, ensaios, confissões, meditações, paródias, peripatéticos passeios,  acompanhados de infindável comentário, sempre recomeçando, e até os modelos mais  clássicos de sistema (Espinosa com sua ética, Hegel com sua lógica, Fichte com sua  doutrina-da-ciência) são atingidos nesse próprio estatuto sistemático pelo paradoxo  constitutivo que os faz viver. Essa vitalidade da filosofia, em suas múltiplas formas, é  denominador comum dos livros desta coleção, que não se pretende disciplinarmente  filosófica, mas, justamente, portadora desses grãos de antidogmatismo que impedem o  pensamento de enclausurar-se: um convite à liberdade e à alegria da reflexão.  
Rubens Rodrigues Torres Filho 
Hesíodo  
TEOGONIA 
A ORIGEM DOS DEUSES 
Estudo e tradução Jaa Torrano  3a edição  
Biblioteca Pólen 
Dirigida por Rubens Rodrigues Torres Filho Copyright © da tradução: Jaa Torrano 
Título original do poema: Theogonía 
Revisão desta edição: Ana Paula Cardoso Composição: Iluminuras 
ISBN: 85-85219-22-X 
1995  
EDITORA ILUMINURAS LTDA. 
Rua Oscar Freire, 1233 
01426-001 - São Paulo - SP 
Tel.: (011) 852-8284 
Fax:(011)282-5317
Í 
Somente há chave que dê o sentido do símbolo 
para quem compreende a simbólica mítica. 
Somente há via que conduza ao sentido sagrado 
do símbolo para quem vive a simbólica iniciática. 
BERTEAUX, Raoul — La Voie symbolique. Paris,  
Lauzeray International, 1978, p. 61.
DEDICATÓRIA  
Quando Heráclito viu perfeito o seu livrinho, depositou-o no templo de Ártemis  Senhora das Feras, a Deusa de muitos úberes. Agora que vejo concluído o meu, a  Deusa não tem mais templos, nem as feras têm Senhora, nem as feras são mais  ferozes, ainda que sejam piores: contagiosas, poluentes. 
Como Heráclito pôs em seu livrinho os aforismas de sua Sabedoria Arcaica,  tentei pôr neste meu as dicas das visões que vi e da Senda que tenho trilhado e pela  qual penso alcançar o télos de meu Destino. 
Outros já passaram por esta Senda; por isso a novidade de tudo o que eu digo  de novo está na força da repetição. A força do Sábio está em saber dizer o já dito  com o mesmo vigor com que foi dito pela primeira vez. 
Evocada ou não, contemplada ou sem templo, a Deusa Mãe está presente e nos  nutre. As feras, ainda que tenham perdido a inocência e a natural crueldade, são  sempre as suas crias. 
Tão perverso como as ex-feras minhas contemporâneas, de cujo convívio não  poderei me apartar senão quando me sentir próximo do fim de meus dias, vivo nos  últimos anos desta Idade de Ferro preditos por Hesíodo — e confio este meu  livrinho aos que tiverem prazer em falar e ouvir falar dos Deuses sempre vivos, e  aos que com Eles vivem.
O MUNDO COMO  FUNÇÃO DE MUSA
I  
DISCURSO SOBRE UMA CANÇÃO NUMINOSA  
O que se lera neste livro é um discurso sobre o nefando e sobre o  inefável, i.e., um discurso sobre a experiência do Sagrado, um discurso sobre  o que não deve e não pode ser dito, quer por ser motivo do mais desgraço  horror (o Nefando), quer por ser motivo e objeto da mais sublime vivência (o  Inefável). 
Portanto, o trabalho aqui apresentado (con)centra-se num problema  metodológico insolúvel, já que este trabalho se propõe a executar o  inexeqüível, ou seja: se propõe como um discurso sobre a experiência do  Sagrado. Se essa experiência for apreendida e compreendida (talvez fosse  mais adequado dizer não com-preendida, mas con-vividà) em seu mais  próprio sentido e vigor, — então este discurso que se propõe apresentá-la  deve necessariamente frustrar-se enquanto discurso. 
Um discurso que se propõe dizer com rigor a essência do que em seu  vigor é indizível (nefando e/ou inefável) não pode cumprir-se a rigor. Se ele  se fizer como um discurso rigoroso, ele deverá para isso falsificar a  apresentação de seu objeto e, portanto, ele deverá, para ser rigoroso, ser  também falso. 
Este discurso, portanto, mais do que se resignar a seu próprio fracasso — já que tem por escopo realizar a impossibilidade enquanto ela vigora como  impossibilidade — deverá programar o seu próprio fracasso e deverá, na  avaliação que fizer de sua própria eficiência e efetividade, estar atento a que  só pode computar como êxito e consecução do objeto perseguido os seus  momentos de fracasso, momentos nos quais não atingiu o objeto ao qual  perseguia. 
Mas o Sagrado (ou melhor: o Numinoso), sobre o qual este trabalho  propõe-se constituir um discurso, é uma qualificação especial a que podem  servir de suporte determinados objetos. Se esta qualificação especial  constituída pelo Numinoso é que é indizível (e, por conseqüência, a especial  qualidade da experiência humana desta qualificação constituída pelo  Numinoso), — não é absolutamente indizível o objeto que suporta a  qualificação de numinoso; esse objeto pode ser dito, descrito e definido.— Por conseguinte, além de se propor a consecução do que não se deve (porque 
não se pode) conseguir (i.e., dizer o indizível), este trabalho se propõe  apresentar, por meio de uma descrição, determinados objetos enquanto  suportes desta inexprimível qualificação que é o numinoso. 
Assim, este trabalho se propõe descrever a linguagem enquanto objeto de  uma experiência numinosa arcaica. Esta experiência da linguagem está  profunda e inextricavelmente ligada a uma certa concepção arcaica da  linguagem, a uma certa concepção arcaica de tempo, a uma certa concepção  arcaica de Ser e de Verdade. 
O objetivo a que se programa este trabalho é, além de seu próprio  fracasso (entendido como a mais adequada medida para o seu êxito),  descrever como foi vivida e apresentada na Teogonia hesiódica a complexão  das concepções arcaicas de linguagem, de tempo, de Ser e de Verdade. 
A linguagem é, neste caso, a linguagem do aedo, i.e., a canção — uma  canção que ao mesmo tempo é veículo de uma concepção do mundo e  suporte de uma experiência numinosa.
II  
OUVIR VER VIVER A CANÇÃO  
A poesia de Hesíodo é arcaica e, a meu ver, só podemos apreciá-la em  sua plenitude e vigor se estivermos atentos ao sentido em que ela o é e às  suas implicações. Na afirmação segundo a qual a poesia de Hesíodo é  arcaica, devemos levar em conta o sentido historiográfico da palavra arcaico  ("Época Arcaica"), o sentido que aponta a anterioridade e a antigüidade (uma  canção composta quando o pensamento racional começava a pré-figurar-se),  e ainda um sentido etimológico, que envolve a idéia de arkhé, de um  princípio inaugural, constitutivo e dirigente de toda a experiência da palavra  poética. Se meditarmos nessas três direções implicadas no arcaico do poema  hesiódico, talvez nos aproximemos com maior clareza das condições em que  esta poesia se deu pela primeira vez aos homens e possamos compreender a  função, natureza e sentido com que então ela se fazia presente. 
Os estudiosos designaram Arcaica a Época em cujos umbrais Hesíodo  viveu e compôs seus cantos. Na Grécia, os séculos VIII -VII a.C.  testemunharam a germinação ou transplante de instituições sociais e  culturais cujo florescimento ulterior transmutaria revolucionariamente as  condições, fundamentos e pontos de referência da existência humana: a  polis, o alfabeto e a moeda. No entanto, a poesia de Hesíodo é anterior ao  florescimento dessas três invenções catastróficas e, ainda que já tenha sido  escrita ao ser composta, toda ela se orienta e vigora dentro das dimensões  anteriores às condições paulatinamente trazidas por essas três. A polis e a  moeda estão ausentes ou só pressentidas no poema a que, por sua  envergadura social, agrícola e mercantil, mais elas interessariam: Os  trabalhos e os dias. E o uso do alfabeto e suas conseqüências (cujo caráter  deletério para a Memória Sócrates acusa no Fedro) estão ausentes e  afastados da concepção de poesia que é exposta na Teogonia (no hino às  Musas, versos 1 a 115) e que subjacentemente fundamenta tanto a  elaboração como a devida fruição do poema. 
A marca da oralidade não está somente nas características exteriores e  formais da Teogonia, a saber: 
1) nas fórmulas e frases pré-fabricadas que, combinando-se como  mosaicos, vão compondo os versos em seqüências salpicadas por palavras e  expressões inevitavelmente retornantes;
2) na justaposição com que as seqüências narrativas se associam sem que  nenhuma delas se centralize articulando em torno de si as outras, mas antes  tendo cada seqüência narrativa um igual valor na sintaxe da narração total e  podendo portanto sempre e ao arbítrio do poeta articular-se a um número  quase indefinido de novas seqüências; 
3) nos catálogos (listas de nomes próprios) que se oferecem como um  espetacular jogo mnemônico, que só a habilidade do poeta redime do  gratuito e lhe confere uma função motivada e significativa dentro do  contexto do poema. 
A marca da oralidade está também na própria concepção de linguagem  poética que Hesíodo tem e expõe nos prologais 115 versos do hino às Musas,  e sobretudo no uso que ele faz desta linguagem e na plena certeza que ele  tem do poder de presentificação de seu canto. 
Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior à constituição da polis e à  adoção do alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o máximo poder  da tecnologia de comunicação. Toda a visão de mundo e consciência de sua  própria história (sagrada e/ou exemplar) é, para este grupo social,  conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através da audição deste  canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas  possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras  geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis,  e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do  canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto, tem na  palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e  distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela  Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). Fecundada  por Zeus Pai, que no panteão hesiódico encarna a Justiça e a Soberania  supremas, a Memória gera e dá à luz as Palavras Cantadas, que na língua de  Hesíodo se dizem Musas. Portanto, o canto (as Musas) é nascido da  Memória (num sentido psicológico, inclusive) e do mais alto exercício do  Poder (num sentido político, inclusive). O aedo (Hesíodo) se põe ao lado e  por vezes acima dos basileîs (reis), nobres locais que detinham o poder de  conservar e interpretar as fórmulas pré-jurídicas não-escritas e administrar a  justiça entre querelantes e que encarnavam a autoridade mais alta entre os  homens. Esta extrema importância que se confere ao poeta e à poesia  repousa em parte no fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma  cultura oral, um cultor da Memória (no sentido religioso e no da eficiência  prática), e em parte no imenso poder que os povos ágrafos sentem na força  da palavra e que a adoção do alfabeto solapou até quase destruir. Este poder  da força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e 
a coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a  presença da própria coisa. Nascida antes que o veneno do alfabeto  entorpecesse a Memória, a poesia de Hesíodo é também anterior à  elaboração da prosa em seus vários registros e à diversificação da  experiência poética em seus característicos gêneros. O aedo canta sem que  ao exercício de seu canto se contraponha outra modalidade artística do uso  da palavra. Seus versos hexâmetros nascem num fluxo contínuo, como a  única forma própria para a palavra mostrar-se em toda a sua plenitude e  força ontofânicas, como a mais alta revelação da vida, dos Deuses, do  mundo e dos seres. De nenhum outro modo a palavra libera toda a sua força,  nenhuma outra forma poética se põe como alternativa à em que o canto se  configura. 
Só quase um século depois de Hesíodo surge, com Arquíloco de Paros, a  poesia lírica que, tematizando o aqui e agora, os sentimentos, atitudes e  valores individuais do poeta, constitui-se com os seus metros vários um novo  gênero, uma nova gênese, uma nova forma de manifestação da palavra,  nascida e própria das novas condições trazidas pela polis, pela reforma  hoplítica, pelo uso do alfabeto. Ao mesmo tempo e solidariamente ao  nascimento da lírica, os primeiros pensadores jônicos e os logógrafos  (autores de registros de fundações de cidades-colônias e de genealogias da  nobreza) começam a elaboração da prosa; a língua grega começa a adquirir  palavras abstratas (sobretudo pela substantivação de adjetivos no neutro  singular); e o pensamento racional começa a abrir novas perspectivas a partir  das quais imporá novas exigências. Com os pensadores a linguagem põe-se a  caminho de tornar-se abstrato-conceitual, racional, hipotática e desencarnada  (na perfeição do processo, o nome se torna um signo convencionado para a  coisa nomeada, cf. Crátilo de Platão). Com os poetas líricos a linguagem  perscruta a realidade do indivíduo humano, examina seus sentimentos,  valores e motivações, até começar a transmutá-los e transportá-los, de forças  divinas e cósmicas que eram (v.g. Êros, Éris, Aidós, Apáte, Áte, Lyssa, etc.)  para um interiorizado páthos humano (amor, rivalidade, pudor, engano,  loucura, furor, etc.).  
Poetas líricos e pensadores colaboram inicialmente (séculos VII e VI) na  grande tarefa de elaborar uma linguagem abstrato-conceitual e apta como  instrumento de análise tanto do cosmos como da realidade humana; e em  verdade nos pródomos deste processo multi-secular de transformação da  linguagem em instrumento está Hesíodo. A tentativa globalizadora de  sinopse dos mitos com a qual a Teogonia se esforça por organizá-los em  torno da figura e da soberania de Zeus é de fato o primeiro (ou um dos  primeiros) alvor da atividade unificante, totalizante e subordinante do 
pensamento racional. Perseguir a totalidade unificada, o Todo-Uno (Pân  Hén), é a aspiração extrema do pensamento racional e da prosa, que um ao  outro se elaboram e se trabalham, a partir das novas condições oferecidas  pelo alfabeto para se aprisionar as palavras pela arte da escrita, despojá-las  paulatinamente de seu poder encantatório e de sua magia musical e  imagética, despojá-las do domínio que exercem numinosamente sobre o  homem e domesticá-las no cativeiro da escritura e torná-las instrumento  seco, fixo e preciso. Em Hesíodo as palavras são forças divinas, Deusas  nascidas de Zeus e Memória (as Musas), mas Hesíodo já ouve o apelo do  Todo-Uno e é claramente perceptível na Teogonia a tendência de toda a  polimorfa realidade e os múltiplos âmbitos do Divino convergirem  subordinados à realeza de Zeus Pai dos homens e dos Deuses. A luta de Zeus  pelo poder e a manutenção do poder por Zeus é à uma o ápice e o centro da  visão do mundo apresentada na Teogonia; — isso e ainda ser a Teogonia  uma sinopse não só de mitos de diversas procedências mas uma sinopse do  próprio processo cosmogônico e mundificante mostram que neste canto  arcaico pulsa já o primeiro impulso do pensamento racional.  
Em Os trabalhos e os dias Hesíodo tematiza o seu aqui e agora — o que  é a radical descoberta e invenção dos líricos gregos. E se por um lado, como  vimos, a Teogonia se liga a uma ulterior corrente da Época Arcaica, a do  pensamento com o qual a Razão se manifestou através da elaboração do  discurso em prosa, — por outro lado também se liga a certas práticas  inauguradas pela poesia lírica: Hesíodo se nomeia a si mesmo no seu canto  sobre o nascimento dos Deuses (v. 22) e dá, nos seus dois principais poemas  supérstites, a respeito de sua própria vida todas as notícias de que hoje  dispomos sobre ela com maior segurança (Trabalhos, vv. 27-41, 631-40,  650-62; Teogonia, 23-34).  
Assim é arcaica a poesia hesiódica: ligada formalmente à épica homérica  (hexâmetros, estilo próprio à composição oral), ligada prenunciai e  prefiguradoramente às duas mais importantes correntes culturais ulteriores a  ela (a dos pensadores e a da poesia lírica), expondo uma concepção  caracteristicamente ágrafo-oral de poesia e expondo-se rigorosamente  segundo essa concepção. (Analisaremos adiante mais ampla e  pormenorizadamente que concepção é esta e como o é.)  
No que concerne ao sentido historiográfico ("Época Arcaica") e ao  sentido usual (antigo, anterior) deste adjetivo arcaico, a poesia hesiódica  pertence a uma outra época por tudo diversa e distante da nossa e de nossos  hábitos, pertence a um outro mundo mental, para nós sem interesse porque  com nenhum ou só escassos pontos de contato com o nosso próprio mundo  mental. E se fosse apenas pelos dois primeiros sentidos do arcaico, a leitura 
da Teogonia seria deveras estudiosa e trabalhosa, do interesse e competência  apenas da pesquisa erudita e acadêmica. Mas não é nada disso, porque não é  só arcaica nesses dois sentidos. A leitura da Teogonia ultrapassa e extrapola  o interesse da mera erudição acadêmica, porque o mundo que este poema  arcaico põe à luz, e no qual ele próprio vive, está vivo de um modo  permanente e — enquanto formos homens — imortal. Um mundo mágico,  mítico, arquetípico e divino, que beira o Espanto e o Horror, que permite a  experiência do Sublime e do Terrível, e ao qual o nosso próprio mundo  mental e a nossa própria vida estão umbilicalmente ligados. Porque também  num sentido etimológico a poesia hesiódica é arcaica.  
Durante milênios, anteriores à adoção e difusão da escrita, a poesia foi  oral e foi o centro e o eixo da vida espiritual dos povos, da gente que —  reunida em torno do poeta numa cerimônia ao mesmo tempo religiosa,  festiva e mágica — a ouvia. Então, a palavra tinha o poder de tornar  presentes os fatos passados e os fatos futuros (Teogonia, vv. 32 e 38), de  restaurar e renovar a vida (idem, vv. 98-103).  
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o  tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição  e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de  cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em  contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o  poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes.—Na  solidária colaboração dos homens com a Divindade, o rei-cantor na antiga  Babilônia devia entoar, nas festas de Ano Novo, o poema narrativo de corno  a ordem cósmica divina e humana surgiu prevalecendo sobre as anteriores  trevas amorfas, e por meio desta declamação do canto prover que o novo  círculo do Ano, o novo ciclo do Mundo, tendo retornado a suas fontes  originais, se refizessem de novo no Novo Ano.— Este poder ontopoético que  a palavra cantada teve multimilenarmente nas culturas orais se faz presente  na poesia de Hesíodo como um poder ontofânico. O mundo, os seres, os  Deuses (tudo são Deuses) e a vida aos homens surgem no canto das Musas  no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor  Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os  Deuses e a vida aos homens. Este poder ontofânico da palavra perdura ainda  hoje em nossa experiência poética e em nossa experiência bem mais vulgar  de temor a certas palavras aziagas. Desde sempre e ainda hoje — e creio que  assim será sempre — o maior encanto da poesia reside no seu poder de  instaurar uma realidade própria a ela, de iluminar um mundo que sem ela  não existiria. Para Hesíodo, este mundo instaurado pela poesia é o próprio  mundo; — por isso certos Deuses monstruosos e terríveis não devem ser 
nomeados, são não-nomeáveis (ouk onomastoí, Teog. v. 148), é o domínio  do nefando, o que não deve ser dito (oútiphateión, idem v. 310). Em Hesíodo  as palavras cantadas não são uma constelação de signos abstratos e vazios,  mas forças divinas nascidas de Zeus Pai e da Memória, que sabiamente  fazem o mundo, os Deuses e os fatos esplenderem na luz da Presença, e  implantam, na vida dos homens, um sentido que, com o vigor do eterno,  centra-a e ultrapassa-a.  
Neste sentido de que nela está total e vigorosamente encarnado o que é a  maior força de encantamento da poesia ainda hoje e multimilenarmente, a  poesia hesiódica é arcaica, — porque nela mais plena e claramente se  manifesta a arkhé da poesia: o seu poder ontofânico. 
III  
MUSAS E SER  
A primeira palavra que se pronuncia neste canto sobre o nascimento dos  Deuses e do mundo é Musas, no genitivo plural. Por que esta palavra e não  outra? Dentro da perspectiva da experiência arcaica da linguagem, por outra  palavra qualquer o canto não poderia começar, não poderia se fazer canto,  ter a força de trazer consigo os seres e os âmbitos em que são. É preciso que  primeiro o nome das Musas se pronuncie e as Musas se apresentem como a  numinosa força que são das palavras cantadas, para que o canto se dê em seu  encanto. Pois dentro desta perspectiva arcaica, o nome das Musas são as  Musas e as Musas são o Canto em seu encanto. O nome das Musas é o  próprio ser das Musas, porque as Musas se pronunciam quando o nome delas  se apresenta em seu ser, porque quando as Musas se apresentam em seu ser,  o ser-nome delas se pronuncia.  
Elas são o princípio do canto, tanto no sentido inaugural como no  dirigente-constitutivo (da arkhé). A exortação "pelas Musas comecemos a  cantar" diz também que tenhamos nelas o princípio por que nos deixar guiar  e exprime ainda a vontade de que seja pela força delas que se cante. Não é  nem a voz nem a habilidade humana do cantor que imprimirá sentido e  força, direção e presença ao canto, mas é a própria força e presença das  Musas que gera e dirige o nosso canto1. — Assim o canto irrompe e se  manifesta, a partir do nome que o nomeia em sua força numinosa, e os  versos que seguem ao verso inicial são desdobramentos e explicitações do  que neste nome (Mousáon = Pelas Musas) se diz no início e como o  Princípio: o pronome Elas (vv. 2 e 22), a indicar sempre este nome-ser do  Canto, retoma-o como sujeito das cláusulas descritivas e narrativas das  atividades habituais deste Canto (i.e., das Musas) que pelo nome numinoso  se evoca e se faz presente. 
1) O genitivo-ablativo Mousáon ("Pelas Musas") e o subjuntivo médio-passivo arkliómetha  ("comecemos"/"sejamos dirigidos") têm um nuanceamento semântico maior do que o podem suportar as  palavras portuguesas de nossa tradução e mesmo maior do que o podem suspeitar os nossos hábitos  lógico-analíticos. A distinção entre o sentido próprio à voz média ("comecemos") e o próprio à passiva  ("sejamos dirigidos") aqui neste verso principiai é muito menor do que o nosso rigor analítico apreciaria  ver; a noção de arkhé contida no verbo arkliómetha reúne numa unidade indiscernível o sentido de  princípio-começo e o de princípio-poder-império.  
"Elas têm grande e divino o monte Hélicon." O verbo grego ékhousin  ("têm") conserva a dupla acepção de ter-ocupar-habitar e a de ter-manter suster2. Como as Deusas o têm por habitação, elas o mantêm na grandeza e 
sacralidade em que ele se mostra. É pela presença delas que ele, o Hélicon,  se dá em sua presença imponente e sagrada. Mantendo o Hélicon como sua  habitação, elas o mantêm como uma hierofania — como mantêm no encanto  do canto o poder de presentificar o que sem elas é ausente.  
2) Não nos esqueçamos de que habitare ("habitar") é um freqüentativo de habere ("ter"), que  também conserva em latim essa dupla acepção. 
Presentes, as Musas são um poder de presença e de presentificação. Isto  é o que se vai mostrando em inúmeros momentos e de vários modos neste  hino que abre a Teogonia e neste canto teogônico assim aberto. 
A dança em volta da fonte (vv. 3-4) é uma prática de magia simpatética  com que o pensamento mítico analógico crê garantir a perenidade do fluxo  da fonte. O círculo ininterrupto, que a dança constitui, comunicaria por  contágio o seu caráter de renovação constante e de inesgotável infinitude ao  fluxo da água, preservando-o e fortalecendo-o. Nestes dois versos  justapostos (3-4), as Musas dançam em torno da fonte violácea e do altar do  fortíssimo Zeus. Como centros criados pela circunferência da dança, a fonte  e o altar se equivalem. E todo o contexto deste Proêmio mostrará que, como  a fonte é fortalecida e mantida pela dança, o altar do bem forte filho de  Crono (i.e., a presença da própria força de Zeus) é mantido pelo canto e  dança das Musas. O fluxo recebe da dança a sua força, e o altar de Zeus,  força suprema, também a recebe da voz e da dança das Musas. Um verbo  como mélpomai (= "cantar-dançar"), donde o nome Melpoméne para uma  delas, indica o quanto eram sentidos pelos gregos antigos como uma unidade  os atos de cantar e dançar, a voz e o gesto. — Voz e gestos que, executados  pelas Musas, tornam aqui presente a Força de Zeus entre os homens. 
A seqüência dos versos 5-21 descreve as Deusas ambiguamente com os  hábitos das mortais gregas e à uma como potestades ontofânicas que são.  Banham-se antes de formarem os coros, como as gregas cuidadosas de se  mostrarem mais belas no espetáculo; banham-se nos córregos e fontes e  dançam sobre os cimos das montanhas, como se ninfas desses lugares. Mas  elas são sobretudo a belíssima voz que brilha no negror da noite (do Não 
Ser). "Ocultas por muita névoa" é fórmula épica para indicar a invisibilidade:  as Musas, invisíveis, manifestam-se unicamente como o canto e o som de  dança a esplender dentro da noite. A procissão noturna, invisível, de  cantoras-dançarinas faz surgir por suas vozes os Deuses da "atual" fase  cósmica e os das duas "anteriores", como se neste catálogo (vv. 11-21) se  desse uma teogonia "ascendente"3, a remontar dos Deuses "atuais", Zeus,  Hera, Apoio, às Divindades de gerações "anteriores", até as forças  originárias donde tudo saiu à luz: "a Terra, o grande Oceano, a Noite negra". 
A irrupção da voz, impondo-se à Noite negra, traz consigo os Deuses  senhores de cada fase cósmica, a ordem cósmica que estes Deuses  determinam e em si mesmos são, e traz ainda consigo a própria noite  circundante dentro de que as Musas surgem como belíssima voz e fazem  surgir múltiplo o cosmo divino. Fecham este catálogo a Noite negra  (expressão do Não-Ser, filha do Kháos, a noite circunstante e a solitária  geradora de todas as forças que marcam pela privação e não-ser a vida do  homem) e a referência à sagrada geração (= ser) dos outros imortais sempre  vivos. Assim, enantiologicamente, as potências ontofânicas (Musas) situam se no meio da potência do não-ser e da privação (Noite) e mais: trazem junto  à sua plenitude configuradora da Ordem e da Vida esta Força originária da  Negação.  
3) Cf. Méautis, George. "Le prologue a la Théogonie d'Hésiode" In: Revue des Études Grecques, L  II, 1939, pp. 573-83. 
A manifestação das Musas não é apenas um esplendor e diacosmese que  se opõem ao reino das trevas e da carência, mas sobretudo tem no  antinômico reino da Noite o seu fundamento e, ao esplender em seu  fundamento, dá a este mesmo reino antinômico a sua fundamentação. Nesta  sabedoria arcaica, que encontrou em Heráclito a sua expressão mais clara (e  mais obscura), cada contrário, ao surgir à luz da existência, traz também, por  determinação de sua própria essência, o seu contrário. Na oposição em que  se opõem, os opostos vigoram no mesmo vigor em que um contra o outro os  opõe a unidade que na essência deles os reúne 
a um e outro. Assim a epifania diacosmética das Musas (filhas de Zeus  Olímpio e da Memória) se dá nas trevas meônticas da Noite (geradora do  sono, da morte, dos massacres e do esquecimento) e, ao nomear as gerações  (=os seres) divinas fazendo-as presentes por força da belíssima voz, nomeia  também a Noite, dando-lhe por fundamento o ser-nome.  
Esta tensão enantiológica aduzida pela visão aguda da unidade dos  opostos penetra e perpassa toda a Teogonia — e todo o Mito e Religião  gregos.  
Na primeira epifania das Musas a Hesíodo, quando estas lhe outorgam  com o cetro o dom do canto, outras oposições e identidades (ou, talvez,  melhor: mesmitudes) são postas em relevo pelas palavras mesmas das  Musas. Primeiro, as Deusas reveladoras de todos os seres e de todos os  acontecimentos se contrapõem, enquanto plenitude de vida e de visão, à vida  meramente gástrica de pastores cegos, sendo o que ultrapassa as suas  possibilidades corpóreas; a estes pastores elas se revelam: "ó pastores  agrestes, vis infâmias e ventres só" (v. 26). Esta epifania numinosa é uma 
consagração: inspiram ao pastor Hesíodo o canto que elas próprias cantam e  o poder de torná-las presentes pelo canto ("e a elas primeiro e por último  sempre cantar", v. 34). Depois desta epifania, o pastor agreste encarna, de  certa forma e parcialmente, o Poder numinoso das Musas,—o qual é, em  qualquer de seus aspectos e partes, sempre o Poder numinoso das Musas.  
As Deusas sublinham ainda a ambigüidade do Poder que são elas. A  força de presentificação e descobrimento que põe os seres e fatos à luz da  Presença é a mesma força de ocultação e encobrimento que os subtrai à luz e  lhes impõe a ausência:  
"sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos "e sabemos, se  queremos, dar a ouvir revelações". 
(vv. 27-28) 
Dizer mentiras símeis aos fatos é furtá-los à luz da Presença, encobri-los.  As mentiras são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos como  manifestação do que os encobre. As mentiras são símeis (= homoia) aos fatos  enquanto se dissimula a unidade que, por estar na raiz da similitude, une  simultaneamente em um só lugar o símil e o ser-mesmo. Símil (lat. similis) e  o grego homoia têm a mesma raiz etimológica, que indica como idéia  fundamental da similitude a unidade4. Por meio também desta raiz podemos  apreender e pensar a similitude que une as mentiras e os fatos, unidade similitude em que a mentira e o ser-mesmo se dão como símeis. Ao dar-se  como símil, o ser-mesmo se dissimula pela simulação desta similitude que,  na força do assemelhar e do simular, apresenta-o como simulacro (a mentira  símil). O Símil mesmo é já Outro ao dar-se como símil, pois aí o ser-mesmo  se oculta sob a similitude que o une ao Outro. Assim, na unidade desta  similitude, estão unidos as mentiras e os fatos, pois os fatos, enquanto  símeis, ocultam-se eles mesmos sob a similitude com outra coisa, —  subtraindo-se enquanto ipseidade.  
4) Boisaq, Émile. Dictionnaire étymologique de Ia Langue Grecque. 2" ed. Heidelberg-Paris, Winter-Klincksieck, 1923, pp. 230-l(/im) e 701-2 (hómoios/homós). 
E se a presença de um Deus vige e impõe-se essencialmente como  ipseidade (i.e., como Ele-Mesmo), o encobrir-se da ipseidade por sob a  similitude faz com que a própria Presença se esconda e se subtraia sob o  simulacro verbal de mentiras símeis.  
A similitude com que os fatos se dissimulam e se ocultam sob a  simulação das mentiras símeis é a própria força da ocultação. E esta força  não é outra senão as Musas, i.e., apropria força da desocultação,  presentificação.  
Como desocultação é que os gregos antigos tiveram a experiência 
fundamental da Verdade. A palavra grega alétheia, que a nomeia, indica-a  como não-esquecimento, no sentido em que eles experimentaram o  Esquecimento não como um fato psicológico, mas como uma força  numinosa de ocultação, de encobrimento. Desde as reflexões de Martin  Heidegger5 estamos afeitos a traduzir alétheia por re-velação (como fiz no v.  28), des-ocultação, ou ainda, não-esquecimento. Isto porque a experiência  que originariamente os gregos tiveram da Verdade é radicalmente distinta e  diversa da noção comum hodierna que esta nossa palavra verdade veicula.  
5) Cf., por exemplo, "Alétheia" em Os Pré-Socráticos (seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza). São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 129-42. 
As mentiras símeis aos fatos opõem-se, portanto, às revelações — como  a força da simulação ocultadora se opõe à da presença manifesta — e são, no  entanto, uma só e mesma força. Para bem compreendermos o sentido dos  versos 27-28, em que as Musas indicam que saber constituem, devemos  evitar a mera contraposição de verdade e mentira e ainda mais evitar  entender verdade e mentira como adequação (ou não) do intelecto à coisa ou  como a confirmação (ou não) que a verificação empírica traz ao que a  palavra afirma. As revelações que as Musas, se querem, sabem dar a ouvir  são des-velações, o retirar-se seres e fatos do reino noturno (i.e., me-ôntico)  do Esquecimento e fundá-los como manifestação e Presença.  
O que passa despercebido, o que está oculto, o não-presente, é o que  resvalou já na reino do Esquecimento e do Não-Ser. O que se mostra à luz, o  que brilha ao ser nomeado, o não-ausente, é o que Memória recolhe na força  da belíssima voz que são as Musas. No entanto, Memória gerou as Musas  também como esquecimento ("para oblívio de males e pausa de aflições", v.  55) e, força numinosa que são, as Musas tornam o ser-nome presente ou  impõem-lhe a ausência, manifestam o ser-mesmo como lúcida presença ou o  encobrem com o véu da similitude, presentificam os Deuses configuradores  da Vida e nomeiam a Noite negra. O próprio ser das Musas geradas e  nascidas da Memória as constitui como força de esquecimento e de  memória, com o poder entre presença e ausência, entre a luz da nomeação e  a noite do oblívio. Porque as Musas são o Canto e o Canto é a Presença  como a numinosa força da parusia: este é o reino da Memória, Deusa de  antigüidade venerável, que surge da proximidade das Origens  Mundificantes, nascida do Céu e da Terra (v. 135).  
O que as Musas fazem, quando assim falam (vv. 26-8), é, tanto quanto a  fala, explicitação da natureza delas:  
"por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso  
"colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto 
"divino para que eu glorie o futuro e o passado,  
"impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos  "e a elas primeiro e por último sempre cantar".  
Loureiro é árvore de Apoio, é a forma que assume no reino vegetal a  cratofania de Apoio, — este Deus que juntamente com as Musas atribui o  dom do canto e da citarodia (execução de citara). Colherem as Musas um  ramo a um loureiro viçoso (v. 30-1) indica esta proximidade confluente  destas duas forças divinas, como confluem o canto e a citara. O cetro é, entre  os gregos, símbolo de competência e autoridade com que se pronuncia esta  palavra que se impõe e atua eficazmente, quer nas assembléias guerreiras,  quer nas reuniões onde os reis (basilêis) decidem litígios entre o povo, quer  nos círculos de ouvintes a deleitarem-se com a voz do aedo. O cetro é a  insígnia que, socialmente, mostra no poeta um senhor da Palavra eficaz e  atuante; — é um aspecto material do dom do canto. Ao recebê-lo das Musas,  o poeta é por elas inspirado a cantar os Deuses, os heróis e os fatos  presentes, passados e futuros. Elas lhe outorgam o poder que são elas  próprias, — ou, dito de outro modo, mais usual e menos nítido, o poder de  que elas são as detentoras.  
Que significa gloriar o futuro e o passado?  
Gloriar é expor um ser ou um fato à luz da manifestação, tal como a  essência mesma deste ser ou fato o exige e impõe. Glória (kléos) é esta força  de desvelação própria do que é glorioso, i.e., do que por sua essência mesma  reclama a desvelação; — e esta força é Kleió, Glória, uma das Musas. Por  isso, o poeta, consagrado pelo poder das Musas ao exercício deste mesmo  poder, tem por função gloriar, i.e., desvelar o que por essência reclama a  desvelação. — Mas por que o futuro e o passado? — Porque esta  proclamação desveladora que o poeta exerce como o seu poder próprio é por  excelência a profecia.  
Para a percepção mítica e arcaica, o que na presença se dá como presente  opõe-se, à uma, ao passado e ao futuro, os quais, enquanto ausência, estão  igualmente excluídos da presença. Assim, passado e futuro, equivalentes na  indiferença da exclusão, pertencem do mesmo modo ao reino noturno do  Esquecimento até que a Memória de lá os recolha e faça-os presentes pelas  vozes das Musas. O poeta, portanto, pelo mesmo dom das Musas, é o profeta  de fatos passados e de fatos futuros. Só a força nomeadora e ontofânica da  voz (das Musas) pode redimi-los, aos fatos passados e futuros, do  Esquecimento, i.e., da Força da Ocultação, e presentificá-los como o que  brilha ao ser nomeado, o que se mostra à luz: re-velação.  
A voz das Musas é esplendor, júbilo e expansão da Presença nomeada. O 
grande espírito de Zeus Pai se compraz no interior do Olimpo com os hinos  que se hineiam. O grande espírito de Zeus é a grande percepção (mégan  nóon) da totalidade deste Canto que, impondo-se além de toda interrupção e  dos limites temporais, coincide com o Ser, "ao dizer o presente, o futuro e o  passado" (v. 38). O Canto se expande, jubiloso e esplêndido, na interioridade  do Olimpo (entòs Olympou, v. 37) e faz com que a Casa da Divindade seja  júbilo e esplendor (gelâi... dómata patrós, v. 40). 
Voz infatigável, suave, lirial e imperecível espalha-se aí onde tem a sua  residência a Divindade e é a voz mesma esta residência, porque por esta voz  é que se revela a glória divina, e a própria voz se revela glória divina (vv.  36-52). — Revelando-se a glória divina, revela-se também o que a ela se  opõe: o ser dos homens e dos poderosos (ou cruéis: o adjetivo kraterós é  ambíguo) gigantes. Os homens se opõem ao jubiloso esplendor da vida  divina enquanto eles têm por destino a miséria, a penúria, o sofrimento e a  morte. E os poderosos gigantes se opõem à triunfal plenitude da vida  olímpica enquanto são adversários derrotados e submetidos. Este é o sentido  da palavra aûtis que inicia o v. 50: aûtis marca a oposição entre Deuses e  homens, e entre a harmonia da paz olímpica e os poderosos e por ora  vencidos adversários dessa harmonia. 
Neste hino às Musas que é o hino das Musas (bem como toda a Teogonia  é o hino das Musas a Zeus Pai), revela-se que o Ser é o encanto das Vozes  (i.e., as Musas) e as Vozes não é outra coisa que a múltipla Presença do  Divino.
IV MUSAS E PODER  
Com a narração do nascimento das Musas inicia-se a segunda metade do  hino-proêmio da Teogonia. A primeira parte (vv. 1-52) concentra-se em  torno da relação entre linguagem e ser, ou seja: entre o Canto em seu encanto  e a aparição do que se canta, e conseqüentemente entre a Revelação  (alethéa) e o Esquecimento (lesmosyne). A segunda parte (vv. 53-103) narra  o nascimento das Musas e descreve, como decorrência deste nascimento e da  natureza dos progenitores, os diversos aspectos e implicações do poder  presentificante (o poder que são as Musas) e das funções desse poder. Uma  conseqüente evocação e súplica às Musas (vv. 104-115) completa o hino proêmio e serve de transição ao corpo do poema. 
A rigor, não há na Teogonia uma relação entre linguagem e ser, mas  uma imanência recíproca entre eles. Na Teogonia o reino do ser é o não esquecimento, a aparição (alethéa); toda negação de ser vem da  manifestação da Noite e seus filhos, entre eles o Esquecimento (léthe,  lesmosyne). A linguagem, — que é concebida e experimentada por Hesíodo  como uma força múltipla e numinosa que ele nomeia com o nome de Musas,  — é filha da Memória, ou seja: deste divino Poder trazer à Presença o não presente, coisas passadas ou futuras. Ora, ser é dar-se como presença, como  aparição (alethéa), e a aparição se dá sobretudo através das Musas, estes  poderes divinos provenientes da Memória. O ser-aparição portanto dá-se  através da linguagem, ou seja: por força da linguagem e na linguagem. O  ser-aparição é o desempenho (= a função) das Musas. E o desempenho das  Musas é ser-aparição. É na linguagem que se dá o ser-aparição — e também  o simulacro, as mentiras (v. 27). É na linguagem que impera a aparição  (alethéa) — e também o esquecimento (lesmosyne v. 55). O ser se dá na  linguagem porque a linguagem é numinosamente a força-de-nomear. E a  força-de-nomear repousa sempre no ser, isto é, tem sempre força de ser e de  dar ser. Não se trata portanto de uma relação mas de uma imanência  
recíproca: o ser está na linguagem porque a linguagem está no ser (e  vice-versa). Na expressão de Hesíodo: as Musas falam as aparições (e  também os simulacros de aparições) porque (= todas as vezes que) as Musas  se fazem presentes como força numinosa que são das palavras cantadas. 
Enquanto experimentada como múltiplas forças numinosas, a linguagem  é uma estrutura que encerra para o homem não só todos os eventos e todas as  relações possíveis entre eles, mas ainda a própria consciência que o homem  tem de si e do mundo. A consciência é o círculo absoluto que encerra todos  os eventos e entes possíveis: o âmbito da consciência, na imediatez concreta 
do pensamento mítico, cinge o âmbito do mundo. As relações entre os entes  e a própria presença (ou ausência) de cada ente são, em cada momento e em  cada situação, determinadas pela linguagem e — de um modo mais sensível  — pelo nome e pela nomeação. A força de coerência da linguagem mantém  em seus liames relacionais a coerência do mundo; a força presentificante do  nome (ou melhor: da nomeação) é que mantém a coisa nomeada no reino do  ser, na luz da presença, — o não-nomeado pertence ao reino do oblívio e do  não-ser. 
O homem arcaico sente que a força da linguagem o subjuga e que sua  consciência se firma sobre a linguagem e é por ela dirigida. No caso de um  cantor, que diuturnamente trabalha sua consciência das palavras e das  estruturas lingüísticas, esta percepção do poderio avassalador e governante  da linguagem torna-se ainda mais intensa e mais nítida. Eis então a  experiência numinosa que constitui a epifania das Musas. 
No caso de Hesíodo, a linguagem é por excelência o sagrado. No hino proêmio da Teogonia ele exprime esta piedade e veneração pelas Palavras. O  Sagrado é a pletora de ser. A experiência do sagrado é a mais viva  experiência do que é o mais real, e é a mais vivificante experiência de  Realidade. A partir de sua experiência da epifania das Musas, Hesíodo se  torna Cantor, servo das Musas, o vigia da Palavra. Espiritualmente ele passa  a habitar nesta proximidade do mais real. 
Mas o que aqui, no caso de Hesíodo, é o mais real, — é especificamente  as Palavras. E as Palavras falam do que é real e do que não é real,  apresentando-os quando e como elas querem ("se queremos..." v. 28). As  Palavras falam tudo, elas apresentam o mundo. Sendo as Palavras por  excelência o mais real e consistindo o poder delas especificamente num  poder de presentificação, nas Palavras é que reside o ser. 
Esta imbricação recíproca de linguagem e ser não é senão a recíproca  imbricação de linguagem e poder. As Musas têm e mantêm o domínio do ser  enquanto poderes que são provenientes de Memória. Enquanto filhas de  Memória é que as Musas fazem revelações (alethéa) ou impõem o  esquecimento (lesmosyne). Este poder sobre o ser e o não-ser, este poder  decidir entre a revelação e o esquecimento, — é em verdade a raiz originante  de todo poder, porque este é o poder que configura o mundo e que em cada  momento e em cada situação configura portanto todas as possibilidades de  existência do homem no mundo assim configurado. Se na Teogonia há uma  imanência recíproca entre linguagem e ser, esta imanência se dá pela  recíproca imanência entre linguagem e poder — o poder de configurar o  mundo e de decidir quais possibilidades nele se oferecerão em cada caso ao  homem.
As Musas têm e mantêm o domínio da revelação (ser) e do esquecimento  (não-ser) e este domínio é o da raiz originante de todo poder e exercício de  poder. Na expressão mítica de Hesíodo isto se diz: as Musas são filhas de  Memória e de Zeus. 
Zeus é a expressão suprema do exercício de poder. Toda a cosmogonia,  na visão de Hesíodo, converge e centra-se na assumpção da realeza universal  por Zeus. A Teogonia é em verdade um hino às façanhas e à excelência  guerreiras de Zeus; nela, tudo se dispõe na convergência para esta perfectiva  diacosmese que é a assumpção deste último e definitivo Soberano divino,  (re-)Distribuidor de todas as honrarias e encargos e Mantenedor da ordem e  da justiça. Zeus é a própria expressão do Poder, e toda realeza e exercício de  poder têm sempre a sua fonte em Zeus (ek dè Diòs basilêes v. 96). 
As Musas nascem de Zeus. Uma lei onipresente na Teogonia é que a  descendência é sempre uma explicitação do ser próprio e profundo da  Divindade genitora: o ser próprio dos pais se explicita e torna-se manifesto  na natureza e atividade dos filhos. 
Não são fortuitos, portanto, os epítetos escolhidos para sublinharem,  nesta passagem narrativa do nascimento das Musas, a natureza de seus pais.  Da mãe se diz medéousa (v. 54) e do pai metíeta (v. 56). Medéousa indica  sobretudo a atividade de cuidar (de), tomar conta de, donde a acepção de  reinar, dominar, "rainha nas colinas de Eleutera". Metíeta de mêtis (=  manha, sabedoria prática) envolve a idéia de habilidade em encontrar  expedientes e saídas, traduzi-o—preservando a dignidade em que os gregos  arcaicos tinham a mêtis — por "sábio". Esta que por seu espírito cuidadoso  dirige e reina, este que em todas as circunstâncias sempre conhece e tem as  vias e os meios,—eis o sentido dos epítetos, condizentes com a atividade do  Cantor, nas condições da Cultura em que Hesíodo compôs seus cantos. —  Por outro lado, também não casualmente, o número dos encontros amorosos  revela-se no número das filhas. (Nove noites copulou com Memória o sábio  Zeus, e ela pariu nove moças unânimes — vv. 56 e 60.) 
As circunstâncias do nascimento das Musas dão-se consoante sua  natureza, função e lugares de suas epifanias. As uniões do pai Cronida têm  lugar em Eleutera, onde Memória era cultuada ("rainha") provavelmente por  uma corporação de cantores, visto que a estes sobretudo concernem seus  poderes; e elas nascem em Piéria (que deve ter sido então o principal centro  de seu culto), perto do nevado Olimpo, para onde já se põem em marcha, a  dançar e a cantar. 
Se as Musas já vêm à luz na plenitude de seu ser e no desempenho de  suas funções, entre este momento e as uniões de Zeus e Memória há um  tempo de gestação marcado pela circularidade: "quando girou o ano e 
retornaram as estações / com as minguas das luas e muitos dias  completaram-se" (vv. 68-9). Nestes dois versos, compostos de quatro  cláusulas temporais, a noção de retorno cíclico recebe especial ênfase pela  repetição do advérbio peri, pelos verbos a que este se refere, étrapon (=  retornaram) e etelésthe (= completaram-se como um círculo que se fecha),  além da própria palavra grega para indicar "ano" (eniautós), que designa  todo objeto circular como um anel. A idéia temporal de ano, por si mesma já  primitivamente ligada à de círculo (cf., v.g., Lat. annus, ânus e annulus),  exprime-se aqui redundantemente como um circuito, como um retorno  cíclico, — e em nenhuma outra parte da Teogonia há este acúmulo  reiterativo, ainda que eniautós, o ano-círculo, apareça com verbo indicativo  de movimento circular. Esta redundância aqui, portanto, é um realce  significativo, e não fortuito. — Como nos versos de Parmênides "para mim é  comum (xynón) I donde eu comece, pois aí de novo chegarei de volta" (D.K.,  5), aqui nesta passagem hesiódica a circularidade do tempo encadeia o fim  ao princípio, pois que as Musas, o último rebento de uma cadeia teogônica,  tornam-se em Hesíodo a Divindade primordial, por serem os Nomes-Numes  presentificadores do ser-aparição. 
As Musas distam duas gerações da Divindade Originária, bisnetas que  são da Terra de amplo seio, sede sempre inabalável de todos os seres (v.  117); e no entanto é pelas Musas que têm lugar as revelações, é por elas que  a Presença se dá como Presença, elas são o fundamento do ser e a mais  pletórica realidade. Terra é a sede inabalável de todos os seres e bisavó das  Musas, as Musas são o que funda o ser-aparição e bisnetas da Terra. Esta  recorrência inextricável, que não é senão outro aspecto da imbricação  recíproca de linguagem e ser, imbrica a perspectiva do tempo nesta  reciprocidade de linguagem e ser. A ênfase que nestes dois versos citados  (68-9) se põe sobre a circularidade assinala um outro pólo da referência dos  entes ao fundamento que os mantém, um pólo outro que o da Terra Mãe, e  assinala a inter-referência que entre estes pólos-fundamentos se dá  reciprocamente. Se estes versos não salientassem a noção de circularidade,  este relato do nascimento das Musas discreparia de todo o espírito religioso e  piedade contidos neste hino-proêmio. 
Tão logo nascem, as Musas instauram o coro e a festa, acompanhadas  das Graças (Khárites) e do Desejo (Hímeros). Este participa também do  séquito de Afrodite, onde emparelha com Eros (v. 201). A arte das Musas  não é apenas persuasão (nenhuma delas se chama Peithó, que é uma  oceanina), mas a da sedução, a envolvência da beleza e do apelo sensual.  Acompanha-as o Desejo, que elas despertam, e o companheiro deste, Eros,  invade os ouvintes através da força da voz delas, que pela presença de Eros é 
uma voz amável (eratèn óssan, v. 65) e bem-amável (ep-ératon, v. 67). Uma  delas chama-se Eráto (Amorosa, v. 78). Os coros delas são luzentes,  brilhantes, no sentido do brilho da pele bem-nutrida (liparoí, v. 63). Junto a  elas as Graças e o Desejo têm morada nas festas, quando cantam e dançam  (vv. 64-7). Festa em grego se diz thalía, é o nome de uma das Graças e de  uma das Musas. O primeiro sentido de thalía é o de viço, da exuberância de  seiva, daí a noção de abundância e de festa. É a luxúria da fecundidade, tal  como a Paz é viçosa, fecunda, para os camponeses (tethaluian, v. 902), —  como são fecundas, florescentes, as esposas dos Deuses (thalerèn ákoitin, v.  921, etc), — e ainda como. o Céu fundamento-origem da lúcida e  dominadora raça dos Deuses Olímpios é thalerós (v. 138), fecundo, opulento  de Vida e de sêmenes, ávido de cópulas. 
Na exuberância da festa, do canto e da dança, na fecunda exaltação da  Vida e da Alegria, as Musas fazem-se acompanhar de suas meio-irmãs, as  Graças — filhas de Zeus e Eurínome (vv. 907-9) e "de cujos olhos brilhantes  esparge-se o amor solta-membros, e belo brilha o olhar sob os cílios" (vv.  910-1). No poder das Musas, entre tantos encantos vibra também o sex 
appeal. Como assinala Clémence Ramnoux1, "os gregos conheciam três  maneiras de se impor: pela violência (bía), pela persuasão (peithó) e pela  sedução". Esta última é função das Khárites, Graças, sequazes-irmãs das  Musas, e a estreita conexão entre ambos os grupos se revela também na  homonímia (Thalía-Thalía) e proximidade onomástica (Eutérpe 
Euphrosynè) entre indivíduos de um e outro grupo.  
1) La nuit et les enfants de la nuit. Paris, Flammarion, 1959, pp. 70-1.'Em verdade C. Ramnoux  omite, nessa enumeração, a mais importante dessas maneiras: a mêtis, que é amplamente estudada por  Vernant e Detienne no belíssimo livro Les ruses de 1'intelligence. La mètis des Grecs. Paris, Flammarion,  1974. 
Na procissão para o Olimpo, em que cantam a realeza paterna, as Musas  desempenham a função decorrente da natureza de sua mãe, Memória (vv.  68-75), assim como na subseqüente descrição de sua habitual atividade de  patrocínio dos reis (vv. 80-93) elas se mostram na função herdada do ser de  seu pai, Zeus soberano. No cortejo em que tão logo nascem vão ao Olimpo,  as Musas dançam e cantam o poderio de Zeus, suas armas (o trovão e o raio),  a vitória sobre seus predecessores pela qual conquista o poder, e a perfectiva  ordenação do mundo e (re-)distribuição de honrarias que Zeus levou a cabo  ao assumir a soberania. Este tema de seus cantos e de sua dança coincide  com o próprio tema da Teogonia: o poder e a ordem de Zeus, e a luta feroz  pela qual se impõem. O canto das Musas com que Zeus se compraz no  Olimpo coincide com a canção que Hesíodo compõe e canta inspirado pelas  mesmas Musas: a Divindade se dá na canção.
Curiosamente, Hesíodo diz que "isto elas cantavam tendo o palácio  olímpio" (v. 75). Vimos já que o verbo grego ter (ékho) conserva a dupla  acepção de habitar e de manter. As Musas têm por habitação o palácio  olímpio e elas o mantêm pela força do canto. É porque elas o cantam que ele  se dá entre os homens como sublime Presença. Mantendo o palácio olímpio  em seu canto, elas o mantêm como presentificação da ordem e do poder de  Zeus, — elas revelam esta ordem e poder de Zeus, i.e., elas o fazem  ingressar no reino luminoso do ser, do não-esquecimento. Mas a ordem e o  poder de Zeus são, para Hesíodo, o próprio mundo, a suprema e máxima  realidade. Como as Musas podem fazê-lo ingressar no reino do Ser, se o  reino do Ser não é senão essa ordem e poder de Zeus? — Eis um outro  aspecto da complexão de linguagem, tempo e ser. — Todo o dilema se  dissolve se substituirmos a ordem predominantemente causai em que  estamos habituados a pensar a conexão entre os fatos por uma ordem de  concomitância, sem qualquer determinação causai: a ordem e o poder de  Zeus, que por si mesmos é a realidade suprema, e o Canto, pela natureza da  força que lhe é própria, fazem-nos ingressar no reino do Ser, o qual eles são  tanto quanto o Canto é o Canto na força e natureza do Canto. 
Em verdade, se esta voz que são as Musas é o suporte da cratofania de  Zeus, é também uma explicitação do próprio ser de Zeus. Elas prolongam e  exprimem o ser da Soberania Suprema na importância que elas têm para os  reis, na medida em que elas é que fundamentam e amparam o exercício da  realeza entre os homens. 
Hesíodo solda o segmento em que as Musas se mostram como expressão  do poder materno (Memória, o canto ontofânico e presentificador) ao  segmento em que elas explicitam o ser paterno (Zeus, o exercício do poder e  da autoridade) através de dois versos (vv. 79-80) em que se realça Kalliópe,  a Belavoz. Kalliópe portanto é o elo que irmana reis e cantores, — e, por  esta intersecção entre o canto e a realeza, cujo elemento comum é a Belavoz,  podemos ter uma noção mais clara e mais bem definida do que entendiam  por Belo os gregos arcaicos. 
Reis são nobres locais que guardavam fórmulas não-escritas (díkai)  consagradas pela tradição como normativas da vida pública e social. Estes  senhores, por seu poderio e riqueza, detinham a autoridade de dirimir litígios  e querelas, mediante a aplicação das fórmulas corretas, i.e., itheíeisi díkeisin  (v. 86), cujo conhecimento e conservação era privilégio deles. A palavra  Díke, que em grego veio a significar "Justiça", é cognata do verbo latino  dico, dicere (= dizer), e designava primitivamente estas fórmulas pré 
jurídicas2. Os reis, portanto, dependiam do patrocínio de Memória, para  preservarem as díkai, do de Zeus, para poder aplicá-las em cada caso, e do 
das Musas, para que esta aplicação fosse eficiente e bem-sucedida, se não  também para os fins anteriores. 
2) Cf. Benveniste, Émile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, Minuit, 1969,2°vol.,pp. 107ss. 
O bom êxito dos reis em sua função judicatória dependia sobremaneira  de suas "palavras de mel", do dom da sedução persuasora. Esta capacidade  de "persuadir com brandas palavras", tanto quanto a conveniência geral da  sentença dada no julgamento, é que asseguravam aos reis o gozo da boa  reputação e popularidade. Além disso, a administração da justiça não era de  modo algum um ato meramente cívico, mas também de caráter religioso e  até mágico,—na medida em que a ordem social não se distinguia ainda, para  a mentalidade mítica e arcaica, da ordem natural e até da ordem temporal  (i.e., cronológica). A injustiça social acarretaria distúrbios nas forças  produtivas e na ordem da natureza: peste e esterilidade nos rebanhos,  escassez nas colheitas e portanto penúria e fome, e ainda filhos que não se  assemelham aos pais ou que já nascem encanecidos (cf. Trabalhos, vv. 180- 200 e 214-247). A manutenção da boa ordem social pelos reis era solidária  da ordem da natureza e dos acontecimentos, a sacralidade da justiça social  transcendia o caráter civil das ações ao envolver o próprio cosmo e suas  forças fecundantes e produtivas. 
Encontrar a fórmula correta, pronunciá-la com autoridade e incutir a  aceitação dela no ânimo dos contendentes é praticar a reta justiça, e  assegurar a pacificação social e a ordem da natureza (pela mutualidade desta  com a justiça). E essa atividade se funda no uso eficiente das Palavras, tanto  quanto a do Cantor. Por outro lado, este poder de pronunciar a fórmula justa  e eficiente é um dom com que as Musas — como fadas madrinhas—dotam  os reis a cujo nascimento elas assistem e aos quais elas honram,—o que  implica uma vocação que acompanha o indivíduo ao longo da vida e para a  qual ele deve ter-se preparado desde idade precoce. — Então, recapitulando  o paralelo entre reis e cantores: 
1) a função de ambos tem fundamento no uso eficiente de palavras das  quais eles são os únicos guardiães, sob o patrocínio de Memória; 2) para ambos, o uso desta Palavra é uma especialização, uma qualifi cação que os distingue dos demais e para a qual se prepararam longamente e desde cedo, assistidos pelas Musas; 
3) a autoridade de ambos se estriba na sedução e no fascínio que através  da Palavra exercem sobre seu entourage; 
4) o uso que ambos fazem da palavra tem repercussões nos destinos da  comunidade e na ordem do mundo: o rei-juiz assegura com o bom uso de 
fórmulas (díkai) e de palavras persuasivas uma ordem que é ao mesmo  tempo pública e cósmica, o cantor assegura através de suas canções a  consciência que a comunidade tem de si e de suas conquistas e presentifica a  esta comunidade os seus Deuses e as dimensões do cosmo. Em ambos os  casos a Palavra tem o poder sobre o mundo, sua configuração e suas forças  produtivas. É uma Palavra poderosa, cujo uso implica Forças divinas e o  destino dos homens; e, 
5) portanto, ambos são alunos e protegidos das Musas, ainda que a  realeza como tal seja para os reis sempre oriunda de Zeus, de quem é a  Realeza Suprema, e aos cantores, por seu turno, e só a estes, concorra o  patronato que Apoio dispensa aos citaredos. 
A ordem social não é senão o aspecto que entre os homens assume a  ordem da natureza: una e única vige em ambas a harmonia invisível3 mais  forte e mais poderosa do que todas as suas manifestações. Na administração  da justiça, baseada no uso correto e eficaz da Palavra, os reis colaboram com  a manutenção desta ordem cósmica, com o que asseguram à sua comunidade  o equilíbrio, a opulência e o futuro próspero. Os reis são operadores e  colaboradores dos acontecimentos que se dão no cosmo, porque são  Senhores da Palavra. O poder que têm da Palavra lhes dá o poder sobre  acontecimentos sociais e cósmicos. 
Os poetas também são, igualmente, Senhores da Palavra. Este privilégio  incomparável, que irmana reis e cantores, é que dá a Hesíodo autoridade  para repreender e invectivar os reis venais, cujas sentenças e justiça são  subornáveis mediante presentes (ele invectiva-os nos Trabalhos).—A  condição dada por este privilégio de custodiar o poder da Palavra, Hesíodo  designa-a piedosamente pela qualificação de servo das Musas dada ao cantor  (Mousáon therápon, v. 100), — enquanto pelo exercício deste mesmo poder  os reis são diotrephées, "sustentados por Zeus",ou—na bela fórmula clássica,  — "aluirmos de Zeus" (v. 82). Belavoz é a mais importante das Musas,  porque ela é que acompanha os reis venerandos (vv. 79-80). A voz é bela  não porque seja agradável e requintada, é bela não por características que  consideraríamos formais, — mas por este poder, compartilhado por reis e  poetas, de configurar e assegurar a Ordem, por este poder de manutenção da  Vida e de custódia do Ser. O cantor servo das Musas é o guardião do Ser, os  reis alunos de Zeus são os mantenedores da Ordem (do Cosmo), a ambos por  igual patrocina e sustenta Belavoz — Bela, por seu poder influir  decisivamente nas fontes do Ser e da Vida, pela sua pertinência às dimensões  do mundo e ao sentido e totalidade da Vida. 
3) harmoníe aphanés. Cf. Heráclito, frag. 54 D.K.
V  
A QUÁDRUPLA ORIGEM DA TOTALIDADE  
As figuras que o pensamento arcaico elaborou são, freqüentemente,  como que centro de coincidentia oppositorum. Reunindo em si atributos  contraditórios, aspectos díspares e conflitantes da realidade, estas figuras os  transcendem e integram em seu ser profundo, e podem revelar-se sob  aspectos antitéticos. Se esta transcendência de todos os atributos é o modo de  ser próprio da Divindade, o pensamento arcaico — marcadamente sensível à  experiência numinosa — está muito mais apto e preparado para captar e  compreender as múltiplas nuances enantiológicas do que nos permitem fazê 
lo nossos hodiernos hábitos de rigor conceitual. 
Ambigüidade e pletora de sentidos são características destas figuras.  Nosso esforço por compreendê-las e por transpô-las numa linguagem  conceituai deve estar atento e precavido de que, se esta transposição é  possível, o pensamento arcaico tem outros módulos de organização, outras  instâncias e outra modalidade de coerência. 
Ao buscarmos o sentido de uma destas figuras, devemos antes contar  com nuances cambiantes que refletem aproximações ou identificações para  nós insólitas entre estas figuras, e não com noções unívocas. O pensamento  arcaico é concreto e simbólico, enquanto o nosso pensamento, abstrato,  aspira à univocidade. O mais profícuo — parece-me — é ir circulando em  torno destas figuras, em sucessivas abordagens, que sempre as apanhem de  novo de um novo ponto de vista. Assim, nesta abordagem em círculos  sucessivos, obteremos, em várias visões superpostas, as diversas implicações  e correlações em que vigem e vivem estas figuras. Este método de  circunvoluções e retomadas parece-me justificar-se por si mesmo, já que não  é de outro modo que o pensamento arcaico procede: jamais aborda um  objeto de uma única e definitiva vez descartando-se dele depois, mas sempre  o retoma dentro de outras referências, circunvoluindo através de enfoques  sucessivos e por vezes contrastantes1, — como em verdade se verifica por  toda a Teogonia hesiódica.  
1) Fränkel, Hermann. Early Greek Poetry and Philosophy. Trad. ingl. de Moses Hadas e  James Willis. Oxford, Basil Blackwell, 1975, p. 105.  
Se perguntarmos pelo significado das Potestades originárias, os primeiro  nomeados, nos versos 116-22 que abrem após o Proêmio a cosmogonia de  Hesíodo, — teremos muitas respostas diversas de scholars que se  preocuparam sobretudo com o sentido da palavra Kháos nestes versos, e, 
além destas respostas por vezes incongruentes, deparamos com uma  enigmática questão.  
Versos cuja autenticidade alguns editores suspeitaram e outros  aceitaram, e cuja interpretação também variou, tornam controvertível o  número destas Divindades originárias: são três ou quatro? Kháos, Terra e  Eros — ou Kháos, Terra, Tártaro e Eros?—M. L. West admite em sua edição  crítica a legitimidade dos versos que nesta passagem (116-22) a tradição nos  legou:  
"Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também "Terra de amplo seio,  de todos sede irresvalável sempre, "dos imortais que têm a cabeça do Olimpo  nevado, "e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, "e Eros: o  mais belo entre deuses imortais "solta-membros, dos Deuses todos e dos  homens todos "ele doma no peito o espírito e a prudente vontade".  
F. Solmsen atetiza (i.e., suspeita) o verso 119: "e Tártaro nevoento no  fundo da Terra de amplas vias". Neste verso entretanto M. L. West,  aceitando-o, recomenda que se leia Tártaro como um elemento primordial  distinto—contra uma outra possibilidade, que é a de ler a palavra Tártaro  como complemento do verbo têm do verso anterior (= os imortais têm o  Olimpo e o Tártaro). Ambas estas leituras remontam aos antigos, que já  sentiam o problema: uma a Plutarco, Comuto, Pausânias e Damáscio (a que  é seguida por West), outra a Teófilo e Estobeu. Se acolhermos a proposta de  West, que me parece mais bem fundada na tradição e autoridade dos Antigos  (e mais bem encaixada no sentido do contexto), as Potestades que estão nas  Origens são em Hesíodo: Kháos, Terra, Tártaro e Eros.  
Mas em que relação se encontram entre elas estas Potestades? Por que  esta multiplicação do Ser original? O que significam, nestes versos, estes  quatro primeiro nomeados? Como se distinguem e quadruplamente se  reúnem? — Porque dificilmente seria concebível esta multiplicação da  Origem em quatro seres independentes e absolutos, e sem nenhum  significado e função para esta quaternidade.  
Como assinala Paula Philippson2, há na Teogonia três eficientes recursos  com que se determinam a natureza e sentido de cada Deus. Primeiro, o nome  é por si mesmo significativo—salvo exceções de nomes cuja antigüidade ou  etimologia não-grega tornaram opacos (e neste caso Hesíodo, seguindo uma  tendência da Época Arcaica, procura resgatar-lhes a significação por meio de  trocadilhos e jogo de palavras). Segundo recurso são os epítetos com que  cada personagem pode ser, no estilo épico, amplamente qualificado. E, por  fim, cada Deus se define por seu ponto de inserção na sua linhagem  genealógica: toda descendência é uma explicitação do ser e natureza da  Divindade genitora; quanto mais alta e próxima da origem uma Divindade, 
tanto mais rica e extensa em suas possibilidades de determinação, pois ela  contém em si como virtualidade todos os poderes e seres que dela  descendem.  
2) Philippson, Paula. Origini e forme dei mito greco. Trad. it. de  ngelo Brelich. Milão, Einaudi,  1949, pp. 48-9. 
Terra, além da clareza do nome, tem um epíteto que lhe define o ser: "de  todos sede irresvalável sempre". É a segurança e firmeza inabaláveis, o  fundamento inconcusso de tudo (pánton hédos, v. 117), nela e por ela têm a  sua sede os Deuses Olímpios (pánton hédos... athanáton, vv. 117-8). Esta  referência aos Imortais que tem o Olimpo exprime integramente o que há de  sagrada proximidade nesta mais remota origem: o Olimpo representa para  Hesíodo a mais atual e a mais forte experiência numinosa (nele Zeus tem sua  sede). É esta atualidade numinosa (expressa nos Deuses Olímpios) que  Hesíodo lembra ao nomear Terra como Potestade original, porque a aparição  e presença da Terra como sagrada origem de tudo implica já uma  experiência atual que é a destes habitantes do Olimpo, os seus mais perfeitos  e belos descendentes — estes "Deuses doadores de bens", como também os  designa Hesíodo (v. 111).  
O Tártaro é nevoento (invisível) e fica no fundo da Terra de largos  caminhos. O verso 720 o situa "tão longe sob a Terra quanto é da Terra o  Céu". A simetria estabelecida por este verso é altamente significativa. Já que  o Céu é uma espécie de duplo da Terra (cf. vv. 116-7), o Tártaro "no fundo  da Terra" é uma espécie de duplo especular e negativo da Terra e do Céu  (que são ambos "sede irresvalável para sempre"). Os vv. 740-5 o descrevem  como um "vasto abismo" (khásma méga) onde se anula todo sentido de  direção e onde a única possibilidade que se dá é a queda cega, sem fim e sem  rumo. O Tártaro, "temível até para os Deuses imortais", é o lugar onde "se  estabelece a casa temível da Noite trevosa, aí oculta por escuras nuvens" (vv.  744-5). O Tártaro, portanto, é o duplo especular e negativo (conforme a  simetria descrita no verso 720 e vigorosamente enfatizada nos subseqüentes  vv. 721-5) da Terra e do Céu—tanto quanto é o Céu um duplo perfeito e  positivo da Terra que o "pariu igual a si mesma" (v. 126) "para cercá-la toda  ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre" (vv. 127-8).  
A localização do Tártaro ("no fundo da Terra") e sua natureza simétrica e  negativa quanto à da Terra (lugar da queda sem fim nem rumo e do império  da Noite) ao mesmo tempo que o ligam íntima e essencialmente à Terra (de  que ele é o contra ponto) aproximam-no e aparentam-no a Kháos, em cuja  descendência se incluem Érebos (região infernal) e Noite. 
A Eros sob a forma de uma pedra-ídolo era dirigido em Téspias pela 
época de Hesíodo um culto agrícola da fecundidade. Eros é a Potestade que  preside à união amorosa, o seu domínio estende-se irresistível sobre Deuses  e sobre homens ("de todos os Deuses e de todos os homens doma no peito o  espírito e a prudente vontade"). Ele é um desejo de acasalamento que  avassala todos os seres, sem que se possa opor-lhe resistência: ele é solta 
membros (lysimelés). O melhor comentário que conheço a este epíteto de  Eros é uma ode de Safo em que ela descreve seu estado de paixão amorosa  que, num crescente, beira a lassidão, abandono e palidez da morte, enquanto  sua bem-amada entretém-se com um homem³ . E o melhor comentário que  conheço a Eros como força cósmica de fecundação é este fragmento de As  Danaides de Ésquilo: 
3) Cf. Page. Lyrica Graeca Selecta. Oxford, Oxford University Press, 1968, frag. 199, p. 104. Essa  ode, eu a traduzi assim: 
Parece-me par dos Deuses  
ser o homem que ante a ti  
senta-se e de perto te ouve  
a doce voz  
e o riso desejoso. Sim isso  
me atordoa o coração no peito:  
tão logo te olho, nenhuma voz 
me vem 
mas calada a língua se quebra,  
leve sob a pele um fogo me corre,  
com os olhos nada vejo, sobrezum 
bem os ouvidos,  
frio suor me envolve, tremo  
toda tremor, mais verde que relva  
estou, pouco me parece faltar-me 
para a morte.  
Mas tudo é ousável e sofrível... 
"O Amor (Éros) de acasalar-se domina a Terra. 
"Ama (erâi) o sagrado Céu penetrar a Terra. 
"A chuva ao cair de seu leito celeste 
"Fecunda a Terra, e esta para os mortais gera 
"As pastagens dos rebanhos e os víveres de Deméter".  
Eros, enquanto um dos quatro elementos que são a Origem, ao ser  nomeado e ao presentificar-se o seu domínio, envolve já a referência a todos  os homens e todos os Deuses, que surgirão depois dele. Tal como a Terra, ao  ser nomeada como Origem, traz com sua nomeação a presença dos imortais  que têm o Olimpo nevado. — E como potência cosmogônica, como força de  fecundação da Terra pelo Céu através da chuva-sêmen, como força de  acasalamento e da multiplicação da vida, Eros está tanto mais perto e 
aparentado ao Céu e à Terra (estas sedes sempre seguras dos Deuses e  âmbitos da luz e da vida) quanto o Tártaro, por sua natureza hipoctônica,  noturna e letal, está mais perto e aparentado ao Kháos com sua descendência  tenebrosa e mortífera. 
O nome Kháos está para o verbo khaíno ou sua variante khásko (= "abrir se, entreabrir-se" e ainda: "abrir a boca, as fauces ou o bico") assim como o  nome Éros está para o verbo eráo ou sua variante éramai (= "amar, desejar  apaixonadamente"). Tal como Éros é a força que preside a união amorosa,  Kháos é a força que preside à separação, ao fender-se dividindo-se em dois.  A imagem evocada pelo nome Éros é a da união do par de elementos  masculino e feminino e a resultante procriação da descendência deste par. A  imagem evocada pelo nome Kháos é a de um bico (de ave) que se abre,  fendendo-se em dois o que era um só. Éros é a potência que preside à  procriação por união amorosa, Kháos é a potência que preside à procriação  por cissiparidade. Se a palavra Amor é uma boa tradução possível para o  nome Éros, para o nome Kháos uma boa tradução possível é a palavra  Cissura — ou (e seria o mais adequado, se não fosse pedante): Cissor. 
("Sim bem primeiro surgiu Cissor, depois também  
'Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,  
 "dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,  
"e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,  
 "e Amor que é o mais belo dos deuses imortais"...)  
Há na Teogonia duas formas de procriação: por união amorosa e por  cissiparidade. Os primeiros seres nascem todos por cissiparidade: uma  Divindade originária biparte-se, permanecendo ela própria ao mesmo tempo  que dela surge por esquizogênese uma outra Divindade. Assim Érebos e  Noite nasceram do Kháos (v. 123). Assim Terra primeiro pariu igual a si  mesma o Céu constelado, pariu as altas Montanhas e depois o Mar infértil  (vv. 126-32). 
Toda a descendência de Kháos nasce por cissiparidade, exceto Éter e  Dia, que constituem exceção também por serem dentro desta linhagem os  únicos positivos e luminosos. Tudo o que provém de Kháos pertence à esfera  do não-ser; todos os seus filhos, netos e bisnetos (exceto Éter e Dia) são  potências tenebrosas, são forças de negação da vida e da ordem. Seus filhos  são Érebos e Noite. Érebos é uma espécie de antecâmara do Tártaro e do  reino do que é morto. Noite, após parir Éter e Dia unida a Érebos em amor,  procria por cissiparidade as forças da debilitação, da penúria, da dor, do  esquecimento, do enfraquecimento, da aniquilação, da desordem, do  tormento, do engano, da desaparição e da morte — em suma, tudo o que tem 
a marca do Não-Ser. Estas potências negativas, toda a linhagem de Kháos,  são geradas por cissiparidade; Éter e Dia, potências positivas, são exceções  desta linhagem e geradas por união amorosa. 
Neste caso, há uma simetria especular entre os genitores e os gerados:  Érebos é a região subterrânea, tétrica e noturna ligada ao reino dos mortos;  Éter (Aithér vem de aítho = "queimar, abrasar") é a região superior e de  esplêndida luminosidade do céu diurno. Nem Noite nem Dia são aqui  períodos cronométricos, não têm vínculos com o Sol e os astros (estes  nascem de uma outra linhagem, independente e sem conexão com a de  Kháos); Dia e Noite aqui são princípios ontológicos, a exprimirem  imageticamente a esfera do Ser e a do Não-Ser. Esta oposição especular  (Érebos: Éter: Noite: Dia) é subsumida no jogo enantiológico que é a  mundivisão exposta na Teogonia. Dia e Noite, Ser e Não-Ser, guardam em si  uma relação íntima e profunda entre si: o Ser vige e configura-se segundo  uma estrutura configurada pelo Não-Ser, de tal forma que o pensamento que  pensa o que é o Ser não pode não pensar o Não-Ser. 
Érebos, as trevas infernais, tem só que invertidas a mesma posição e  natureza que Éter, a luminosidade celeste,—e mais: o masculino Éter e seu  par o Dia (que é feminino em grego: Hemére) nascem do par acasalado  Érebos e Noite. 
Do mesmo modo, "no fundo do chão" (i.e., da Terra) está o Tártaro.  Vimos j á a mesma simetria especular entre Tártaro e Terra-Céu; e agora fica  mais claro para nós o que significa, enquanto situação do Tártaro, esta  expressão "no fundo do chão" (mykhôi khthonós, v. 119). Terra, como  assento inabalável e inconcusso de todas as coisas (Ser), tem "no fundo do  chão" este seu duplo invertido, o Tártaro, que é pura Queda cega sem direção  e sem fim, a total ausência e negação do Fundamento, uma imaginosa  expressão do Não-Ser. "No fundo do chão" significa "no âmago da Terra",  mas um âmago onde a Terra não é mais Terra e sim seu contrário: no âmago  do Ser encontramos sua gemelaridade com o Não-Ser. 
Tendo em vista a afinidade e confinidade de Tártaro com Érebos e,  portanto, com Kháos (de cuja natureza Érebos como descendente é uma  explicitação), prossigamos o exame do sentido e função desta Potestade que,  do Quaternário Original, Hesíodo nomeia primeiro. Tártaro, Kháos e seus  filhos Érebos e Noite são expressões diversas de diversas situações e  modalidades em que manifesta a violência da Negação (do Não-Ser). Tártaro  e Érebos, que nos ínferos se confinam, exprimem o Não-Ser  topograficamente como o ínfimo além da extrema circunscrição aonde se  estendem a luz do Céu e a firmeza da Terra. Noite e seus filhos (vv. 211-32)  exprimem-no metafisicamente como o princípio de destruição e de perda que 
sob várias formas atua dramaticamente na vida humana. Kháos, como outra  expressão metafísica do Não-Ser, é um princípio cosmogônico e — para  dizê-lo com exatidão e integralmente — também ontogenético. 
Como princípio cosmogônico, Kháos é a potência que instaura a  procriação por cissiparidade, é um princípio de cissura e de separação, e  como tal opõe-se a Éros, que, como princípio cosmogônico, instaura a  procriação por união de dois elementos diversos e separados, masculino e  feminino. Ambos, Kháos e Éros, estão lado a lado de Terra de amplo seio,  de todos sede inabalável sempre. A rigor, Kháos e Éros, enquanto potências  cosmogônicas, são paredros de Terra, que, sim, é o assento sempre firme, —  o Fundamento Originário. Kháos e Éros, portanto, ladeiam a Terra - Ser  como puros princípios ativos e energéticos, de naturezas opostas e  contrapostas, como paredros (par-édroí) deste Assento Primordial (pánton  hédos). Éros, princípio da união, é estéril, dele mesmo não surge nenhum  rebento, ele de si mesmo nada produz. Kháos, princípio de divisão e  separação, é prolífico e tem através de sua filha Noite numerosos  descendentes :— todos eles, incorpóreos como ele, são como ele puros  princípios ativos e energéticos, sem substância física. Que o princípio da  união seja estéril e o da divisão e separação prolífico — eis algo muito  congruente com a sensibilidade e visão gregas. No Banquete de Platão, Eros  é filho da Indigência (Penía) e do Expediente (Poros) herdando da mãe a  incurável penúria e do pai a inesgotável habilidade. Na sabedoria de  Heráclito, Pólemos (a Guerra) é o pai de todas as coisas e o rei de todas as  coisas (cf. frag. 53 D.K.); a Guerra (que, nomeada no verso 228 da Teogonia  como Hysmínas te Mákhas te, é descendente e portanto uma das expressões  explicitadoras da natureza de Kháos) é um princípio cosmogônico fecundo e  construtivo. Kháos e Éros, nesta leitura que estou propondo, prefiguram na  Teogonia hesiódica as duas forças motrizes que em Empédocles encadeiam e  desencadeiam o ciclo do processo cósmico: Neikos e Aphrodíte, Ódio e  Amor. 
Como princípio ontogenético, Kháos é uma imagem mítica que, ao  pensar o Não-Ser em termos cosmogônicos, compreende também o Não-Ser  na condição gemelar em que Não-Ser e Ser se encontram enquanto Ser e  Não-Ser igualmente estão na raiz da constituição de cada ente. 
A relação entre Kháos e Terra não se dá do mesmo modo que a relação  entre Eros e Terra. Neste Quaternário Original a simetria não é estática, mas  dinâmica: é a tensa simetria de uma unidade quádrupla e agônica. 
Dada a diversidade de natureza entre as duas forças de procriação, há  uma prioridade de Kháos sobre Eros, e Hesíodo marca-a clara e  reiteradamente. Para que mais bem se determine que prioridade é a de 
Kháos, examinemos por quais modos ela se marca:  
1) como prioridade temporal de Kháos sobre Terra e Eros, expressa no  advérbio épeita (= "depois") no v. 116: "Sim bem primeiro nasceu Kháos,  depois também Terra (...)"; 
2) com a situação já citada de Tártaro (cuja homologia com Kháos,  parece-me, já está bastante evidente para não ser preciso demonstrá-la aqui)  "no fundo do chão". Ou seja: Kháos não só ladeia como paredro a Terra tal  como Eros o faz, mas ainda sob a imagem de Tártaro está no fundo da  Terra; — o domínio de Kháos estende-se da colateralidade à profundidade,  enquanto Eros permanece paredro; 
3) com os versos 736-8 (repetidos em 807-9): "da Terra trevosa e do  Tártaro nevoento / e do Mar infértil e do Céu constelado, / de todos, são  contíguos as fontes e os confins". Aqui Terra e Tártaro (—Kháos) são  apresentados como numa contigüidade em que ambos igualmente se  fundamentam.  
A discussão sobre o que significa a prioridade temporal deixarei para  quando tratar da concepção hesiódica de tempo, já que épeita (= "depois")  no verso 116 não tem de modo algum um sentido cronológico e implica  outras dimensões do Real que não os aspectos de que estou tratando aqui. 
A inscrustação de Tártaro (— Kháos) no fundo da Terra e a contigüidade  de "fontes e confins" entre Tártaro (— Kháos) e Terra são, a meu ver,  exemplos das retomadas e repetições com que o pensamento arcaico aborda  os temas de sua reflexão. Ambas estas passagens do Poema (e não só elas)  exprimem em termos míticos que tanto quanto o Não-Ser se determina e se  define a partir da determinação e definição do Ser, o Ser se determina  (onticamente) e se define (num discurso) pelo Não-Ser e pelo conceito de  Não-Ser. Entendendo-se Kháos 
Tártaro como um princípio ontogenético, estas passagens citadas  significam que cada ente se determina não tanto pelo que ele é, mas pelo que  ele não é e pelo contraste (contigüidade) do que ele é com o que ele não é:  tal como uma silhueta, cada ente ou cada coisa se determina e se define  contra o pano de fundo 'e de dentro e de frente e de fora, — múltiplo fundo)  do que ele ou ela não é. 
Terra e Tártaro, que não só se confinam nos Meros mas têm contíguos  fontes e confins, nomeiam ambos esta unidade antagônica em que se dão a  totalidade do Ser e também o Não-Ser. A expressão mítica Terra e Tártaro  equivale à expressão filosófica estóica ti, que, exprimindo o gênero supremo,  engloba Ser e Não-Ser, — mas tendo eles em Hesíodo um antagonismo e 
uma identidade que não tiveram expressão no Estoicismo. Antagonismo e  identidade pelos quais Tártaro se revela como uma contra-imagem do Céu ao  revelar-se o Céu o igual e duplo da Terra. Simetria de Terra-e-Céu  contrapostos especularmente ao Tártaro. E assim também Éter e Dia  espelham Érebos e Noite. E assim também Kháos e Eros, como princípios  cosmogônicos, se espelham. (Note-se bem: como princípios cosmogônicos,  — dado que como princípio ontogenético e ontológico Kháos tem um peso e  uma envergadura que Eros não tem.)
VI 
TRÊS FASES E TRÊS LINHAGENS  
Uma tardia instituição cultural, que a civilização européia elaborou ao  longo de séculos, marca profundamente hoje a nossa visão de mundo e  entendimento das coisas: essa interioridade psicológica, onde se enraízam e  se originam nossas decisões e nossos atos, e que se nos dá como o  fundamento e o estofo da personalidade. Somos de tal modo marcados por  ela que nos causa espanto e até uma sensação de aporia a lembrança de que  essa dimensão interior não é de modo algum um dado inerente à natureza  humana, mas sim uma invenção ou descoberta que, por situar-se no centro  organizador de nossa cultura, tem implicadas em si todas as perspectivas  que, no âmbito de nossa cultura, nos restam abertas de entendimento e visão.  Assim, parece-nos sem terceiro termo possível a distribuição de todos os  fenômenos em duas categorias absolutas: ou são conteúdos de uma  interioridade psicológica, ou uma realidade exterior e objetiva. E por um  consenso unânime e inequívoco, há um elenco de fatos entendidos como  interiores, subjetivos e por isso dotados de um grau inferior de realidade,  dependentes e segundos, — aos quais se opõe uma realidade absoluta, forte e  boa, entendida como exterior e objetiva. — Configurado pelas fronteiras  entre o interior-subjetivo e o exterior-objetivo, está o Sujeito, detentor e  custódio da dimensão interior e seus conteúdos, e fundado neste fulcro  íntimo que é a vontade,—essa fonte permanente e inesgotável de todas as  decisões e ações, e por cuja imanência e constância o Sujeito se torna em  quaisquer circunstâncias responsável por seus atos presentes e passados,  desde que a origem deles se defina como constituída por esta fonte que é a  vontade. 
No entanto, esse esquema dicotômico das coisas, essa complexa  instituição que é a vontade e essa decorrente valoração do exterior-objetivo  como realidade primeira e mais forte, — por mais naturais e reais que  possam hoje nos parecer, — dificilmente encontram uma correspondência,  próxima ou distante, na visão de mundo apresentada na Teogonia hesiódica.  Não se verificam na mais antiga cultura grega. 
São os líricos gregos que na Época Arcaica fazem a descoberta da  profundidade e intensidade espirituais, preparando caminho para ulterior  construção de uma interioridade subjetiva oposta à exterioridade objetiva A  novidade do intenso e do profundo que então se descobrem nos sentimentos  e pensamentos revela-se na afirmação de Heráclito segundo a qual "não  poderias encontrar os limites da psique, ainda que percorresses todos os 
caminhos, tão profunda razão (lógos) ela tem" (frag. 45 D.K.). Para Homero,  a inteligência, por exemplo, pode ser múltipla, cheia de recursos (polymetis,  polyphron), mas não profunda: o pensar profundo (bathymétes, bathyphron)  é uma dimensão nova, explorada pela primeira vez pelos líricos e a seguir  pelos pensadores, que inauguram uma nova modalidade de discurso. 
A tragédia fará um de seus temas centrais a reflexão sobre o vínculo  entre o agente e a ação, sem que ainda se possa constituir essa noção de  vontade, de complexas implicações, que assinala no âmago do agente a fonte  espiritual e constante das ações. Caberia ao esforço de reflexão que por seis  séculos os Estóicos sustentaram dar a contribuição maior para que se  delimitasse essa área de autonomia do sujeito, uma autonomia fundada e  centrada na noção de vontade (que eles propuseram), — e assim se  configurasse essa instituição cultural que, por analogia com a representação  teatral, se denominou pessoa. Esta metáfora, que veio coroar o esforço dos  dramaturgos atenienses e que fez a p&lawapersona transpor o âmbito do  teatro para com maior glória designar isto que hoje todos nós entendemos  que somos, esta metáfora devemo-la ao estóico e embaixador grego em  Roma Panécio de Rodes. 
Não importa nem cabe aqui historiar as vicissitudes originárias da noção  de pessoa e sua constituição multi-secular. Basta-nos estarmos atentos e  lembrados de que essa noção e seus elementos constitutivos, que  enumeramos, não são traços da estrutura da visão de mundo hesiódica. E,  sem esses traços, como esta visão de mundo se estrutura? 
Caracterizadas a vontade, a pessoa e a dicotomia do interior-subjetivo e  do exterior-objetivo como meros traços culturais, que podem não marcar  determinada visão do mundo e do homem, examinemos então como se  apresentaram o mundo e a realidade humana à visão de Hesíodo e seus  contemporâneos. 
Na oposição entre homem e Deus, pela qual unicamente se determina a  área de atribuições e atributos de cada um dos dois, as fronteiras entre ambos  são variáveis segundo a visão que deles têm as diversas culturas. A  compreensão que o homem tem de sua própria essência e condição, de seu  próprio corpo e das funções de seus órgãos corporais, 
— também não tem nada de inerente a uma natureza humana, mas é dada  culturalmente, — tal como a idéia que o homem possa fazer de seu(s)  Deus(es). Assim, muitas das atribuições que hoje por nós são entendidas  como meramente humanas, os contemporâneos de Hesíodo as entendiam  como privilégios da Divindade, inacessíveis aos mortais, 
— e o que na moderna perspectiva cristã se cinge exclusivamente ao  Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã consciência com os seus 
Deuses. 
Para Hesíodo, o mundo não é uma materialidade fundada em uma  essência universalmente homogênea, subsistente por si mesma, e entregue às  suas próprias leis nela inscritas e nas quais ela em seus movimentos e  transformações se inscreve. Não há, nas diversas partes do cosmo, essa  homogeneidade sob os fenômenos, nem essas diversas partes se regulam por  leis intrínsecas, constantes e universais. Essa imagem do mundo é um  produto da nossa ciência moderna e não extrapola as nossas modernas  crenças científicas. 
Para Hesíodo, o mundo é um conjunto não-enumerável de teof anias,  séries sucessivas e simultâneas de presenças divinas. Cada presença é um  pólo de forças e de atributos, que instaura e determina a área temporal espacial de sua manifestação. Esta presença, que instaura a si mesma ao  instaurar-se, inaugura de um modo absoluto o tempo e o espaço definidos de  sua manifestação como o lugar decorrente e originado de sua presença.  Trata-se em cada caso da presença de um Deus, somente com a qual passam  a existir o tempo e o espaço em que esse Deus existe; — e desde que esse  Deus passa a existir ele já está inteiramente presente em todos os tempos e  lugares em que ele se manifesta e historicamente se dá sua vida. Não há um  tempo e espaço que existissem antes de esse Deus existir e que ele viesse  ocupar: a presença do Deus é a força suprema e original, originadora de si  mesma e de tudo o que a ele concerne. O Deus não é senão a sua  superabundante presença e está todo ele presente em todas as suas  manifestações, já que presença não é senão manifestação, negação do  esquecimento, verdade, a-létheia. 
A presença de um Deus coincide com o âmbito de seu domínio.  Entendido esse domínio de um Deus tanto no sentido temporal e espacial,  como no de esfera de atribuições, conjunto de encargos e de funções  exclusivos a ele, podemos dizer que um Deus grego não é senão sua time.  Toda transgressão ao domínio de um Deus implica para ele uma ofensa à sua  time, um apequenamento de sua grandeza, um enfraquecimento na expressão  de seus poderes,—em suma, uma diminuição de seu Ser. Tocar a time de um  Deus, apropriar-se de algum privilégio tomado a ele, é diminuir-lhe o Ser.  Por isso é que, — afirma a expressão piedosa que Heródoto atribui a Sólon  — a Divindade é ciumenta e perturbadora1. O Panteão grego se configura  nessa recíproca oposição de domínios, de timaí divinas, que não são senão  presenças numinosas; é um jogo de Forças que neste mútuo confronto se  determinam a si mesmas, estruturam-se e encontram sua própria expressão.  Um confronto tenso, em que as fronteiras são atentamente vigiadas, estando  cada Deus zeloso (phthonerós) de conservar íntegro o seu âmbito (sua time). 
— A este confronto, descreve-o a sabedoria de Heráclito: "a oposição é  reunidora, e das desuniões surge a mais forte harmonia: através do conflito é  que tudo vem a ser" (frag. 8 D.K.). Neste contexto, não é difícil entendermos  como Heráclito tenha encontrado no Combate (Pólemos, frag. 53 D.K.) e na  diferença (diapherómenon, frag. 10 D.K.) a causa e o fundamento de todos  os seres, e que tenha sentido como uma instância deontológica o "saber que  o Combate é comum, a Justiça é o Conflito e todos os seres surgem através  do Conflito e da Necessidade" (frag. 80 D.K.).  
1) phthonerón te kaí tarakhódes, Heródoto, 1.32. 
Tendo-se em vista essa natureza enantiológica do Panteão grego (um  jogo de Forças que só se definem pela mútua oposição), também não é difícil  entendermos, neste contexto, que uma antiga expressão com que os gregos  designaram a Fatalidade fosse Moîra ou Moîrai, lote ou lotes: embora essa  expressão fosse suscetível de receber e recebesse uma ideação  antropomórfica, fica claro neste nome Moîra que a Fatalidade de modo  algum era concebida como uma transcendência (hyperousía), mas como  imanente (parousía). A Fatalidade, Moîra, é a condição constitutiva do  próprio ser em que ela se exprime, e não uma imposição que se exercesse  sobre o ser a que ela acompanhasse. Esta distinção é da maior importância  para percebermos o quanto o pensamento arcaico é concreto, i.e., centrado  na parousía: ele tende com a sua maior força para a Presença, o Ser para ele  se dá como Presença.  
A Fatalidade se deu à visão grega como uma partilha ou lote; sua  coerção sobre os entes se deu como a impossibilidade de cada ente (divino  ou humano) ultrapassar a esfera que lhe era própria sem que com isso  transgredisse a esfera que constituía os privilégios (timé) de outro Deus. A  força dessa Fatalidade é a da facticidade da partilha.  
A partilha e os lotes, após terem sido discernidos e decididos em bélica  medição de forças, repousam sobre o equilíbrio que, instável e suscetível de  rupturas e irrupções, essas forças encontram quando se submetem ao  vigilante domínio de Zeus. Este é o tema central e precípuo da Teogonia  hesiódica a partilha e os lotes. Na súplica que finaliza o hino-proêmio,  Hesíodo pede às Musas que cantem "como os Deuses dividiram a opulência  e repartiram as honras" (timás, v. 113). Essa divisão da opulência e partilha  das honras não significam outra coisa que o advento de cada Deus à sua  própria existência e a agonística constituição das inúmeras existências  divinas. A partilha das honras, ou seja, a configuração do mundo em sua  ordem atual, completou-se através de três diferentes momentos que, embora  associados às três fases cósmicas, não se devem confundir com elas. Quais 
são essas três fases e que três momentos são esses?  
As fases cósmicas não se dispõem numa sucessão propriamente  cronológica, embora também não sejam simultâneas. Cada uma dessas fases  distingue-se das demais por uma temporalidade qualitativamente diversa,  não havendo portanto um horizonte temporal uno e único que, ao reuni-las  num mesmo plano, estabeleça entre elas uma rigorosa relação de  anterioridade e de posteridade. Assim, ainda que essas três fases conservem  múltiplos contatos entre si, não é possível representar num só e mesmo  cronograma os eventos diversos das diversas fases, dadas as rupturas do  nível temporal entre elas e, também, entre eles.  
A primeira fase está nas proximidades das Origens. Num universo ainda  informe, prevalece a força fecundante do Céu, que, ávido de amor e com  inesgotável desejo de cópula, freqüenta como macho a Terra de amplo seio.  Nesta fase original, o Céu desempenha as mesmas funções que, enquanto  Céu, sempre terá: 1) cobrir toda a Terra ao redor, e 2) ser para os Deuses  venturosos assento sempre seguro (cf. vv. 127-8). Cobrir a Terra e fecundá 
la hierogamicamente através da chuva-sêmen; ser o assento dos Deuses é  dar-lhes origem e fundamento, fundar-lhes a existência. Nesta primeira fase  a Proximidade das Origens é tão forte e impõe-se tanto em sua unificante  força de coesão, que ambas as duas funções do Céu se desempenham no  único e mesmo movimento da fecundação: as mesmas hierogamias que  fecundam a Terra assentam a existência dos Deuses de modo irresvalável. A  Terra está constantemente prenhe, o Céu está em constante desempenho de  ambas as suas funções, que, pela extrema vizinhança das Origens, se  cumprem numa só ação extremamente cheia de potência vital. — A  temporalidade dessa primeira fase é marcada por essa pletora de vida e por  essa procriante superabundância que constituem as Origens no sentido de um  início cronológico, mas Origens como as fontes permanentes e elementos  constitutivos da vida. Assim, são fontes a Terra e seu igual (ison, v. 126), o  Céu, a força do Amor que une e seu contrário, o Caos, cuja força é a da  negação e da cisão; — a mais forte e intensa vizinhança dessas fontes é o  que caracteriza a temporalidade desta primeira fase, o hierogâmico reinado  do Céu. 
O primeiro momento da partilha das honras é o da insurreição de Crono  de curvo pensar, instigado pela Terra. Crono interfere na fecundação da  Terra pelo Céu, pondo limite a essa fase em que os seres divinos (e também  os humanos?) nascem diretamente do seio da Terra fecundada pelos sêmenes  celestes. Crono representa uma forma de inteligência sinuosa, que age  obliquamente, e, pondo-se de tocaia, surpreende e fere seu pai, o Céu,  enquanto ele se entregava inadvertido e desenfreado a sua atividade, que, 
intensa e puramente vital, não conhecia regras nem a reflexão sobre  conveniências e conseqüências. O ardil tramado pela Terra faz  confrontarem-se a intensa e irrefletida vitalidade do Céu e o flexuoso  pensamento de Crono. Esse confronto impõe um limite que regre a força  fecundante do Céu, faz surgir Afrodite, que preside ao novo modo pelo qual  Deuses e homens doravante se procriarão, e faz surgir também estas  Potestades da retaliação às afrontas e transgressões: as Erínias, as Ninfas  Mélias (= Freixos) e os Gigantes belicosos. Afrodite, aquém segue o  cosmogônico Eros (v. 201), compartilha da natureza primordial do Céu,  enquanto força incoercível e coercitiva de acasalamento, e compartilha da  dissimulada inteligência de Crono, pelo que de enganos implicam os jogos  amorosos (v. 205). Afrodite, ao subsumir no seu séquito Eros e Himeros  (Himeros, v. 201, é esse mesmo Desejo que espicaçava o Céu himeíron  philótetos, v. 177), manifesta esses mesmos poderes genesíacos, mas num  grau mais requintado, trabalhado por um espírito sinuoso e previdente. 
As Erínias devem preservar a ordem no novo jogo cujas regras se  instituem com o golpe de Crono-Astúcia sobre o.Céu-Instinto, devem manter  nesse jogo o equilíbrio por meio de (re-)ações compensatórias. O Sol,  scilicet os recursos da inteligência, não transgredirá as medidas, senão as  Erínias auxiliares da Justiça o encontrarão (Heráclito, frag. 94 D.K.). A  inteligência, que impõe limites ao instinto, encontra neles também os seus  limites, impostos pelo instinto. 
Esse novo âmbito, instaurado pelo afastamento do Céu e da Terra pela  oblíqua intervenção da inteligência, é o mesmo campo em que se desfrutam  e fazem suas vítimas os dons de Afrodite e em que se enfrentam e são  vividos os riscos das potências guerreiras, os Gigantes combatentes e as  Ninfas Mélias (Mélias são as lanças duríssimas, feitas do freixo, que têm em  grego esse mesmo nome). A união afrodisíaca e o dissídio beligerante e  mortífero têm um mesmo e único âmbito, esse onde campeia o rigor das  Erínias, guardiãs da Justiça. 
A segunda² fase cósmica é o reinado de Crono, cujo poder é o exercício  de seu curvo pensamento, sempre de atalaia e sempre se disfarçando. Crono  sabia, pela Terra e o Céu constelado, que, apesar de toda a sua força, era seu  destino por desígnios do grande Zeus ser dominado por um filho (vv. 463- 
5). Se, ao reinar, o Céu por sua atividade se define como fecundo (thalèrón,  v. 138), Crono enquanto rei é o vigilante sempre à espreita (dokeúon, v.  466). Tocaiar e engolir seus filhos recém-nascidos são os expedientes com  que ele toma o poder e procura preservá-lo. O seu modo de pensamento é  dito curvo (anlcylométes) porque ele só age obliquamente e sob ardil: e nisso  está ao mesmo tempo a sua mais eficaz arma (o curvo pensar, a foice 
recurva, o ocultar-se e o engolir) e o seu irremediável limite (o ocultar-se e o  engolir não impõem sua presença real como uma soberania, nem atingem a  matriz donde provém a ameaça à sua realeza). É com essa arma e por esse  limite que Crono é batido e derrotado: o ardil concertado por Réia com Céu  e Terra (v. 471)," as artes e violência" de Zeus (v. 496). 
2) Que o recurso a esses ordinais (1o, 2a, 3a) nesta exposição não leve o leitor a supor exatamente o  contrário do que nela se diz; eles têm aqui o mesmo valor que quando usados com referência a elementos  que compõem o con-junto de uma estrutura.  
O reinado do Céu não é senão a manifestação primordial de poder  procriativo das hierogamias de Céu e Terra nessa fase cósmica em que a  natureza prolifera do Céu prevalece incontrastada. O reinado de Crono é  uma soberania cuja circunscrição se delimita e se restringe pela própria  natureza de seu poder, é uma soberania que não se expande mas que por sua  própria natureza permanece sempre paroquial, — e assim paroquial e restrito  permanece o reinado de Crono sobre os homens da Idade de Ouro  (Trabalhos, v. 111) e nas longínquas e além-mundanas Ilhas dos Bem 
Aventurados (Trabalhos, v. 173a). Os limites do reino de Crono coincidem  com os limites do modo e da forma de inteligência que ele representa.  Entretanto, o reinado de Zeus — que corresponde à terceira e perfeita fase  cósmica — tem a universalidade desfrutada pelo reinado do Céu, sem se  restringir como este a um instinto básico, e tem a vigilante previdência  exercida parcialmente por Crono, sem se restringir como este ao modo e  forma da inteligência sinuosa. O reinado de Zeus é a plenitude de poderes  que centra em si a Totalidade Cósmica porque ele próprio se centra no  espírito (sêisi epiphrosyneisi, v. 658; epíphrona boulén, v. 896); — própria  de Zeus é a grande percepção (mégan nóon, v. 37). 
O segundo momento da partilha das honras é o da dominação de Crono  por Zeus e o catastrófico movimento que constitui a Titanomaquia.  Contrastando com o aspecto benévolo com que perduram para sempre o  reinado de Crono e a vida sob Crono (ho epi Krónou bíos), mas concorde  com este outro lado de um Crono-Ogro a devorar os próprios filhos, temos  essa horrenda batalha entre as forças coligadas por Crono e os Deuses  Olímpios comandados por Zeus. Nessa disputa por decidir-se em quem se  centra a realeza universal, a Terra, o Céu, o Mar e as circulares correntes do  Oceano estremecem abrasados pelo fogo do combate. A Totalidade Cósmica  parece reingressar nas Origens donde proveio: Céu e Terra parecem fundir se desabando-se um no outro, a chama prodigiosa reúne tudo num único  sopro, e o próprio Caos—esse princípio cosmogônico de cisão e de  diferenciação — é traspassado na fusão desse incêndio (vv. 690-705). 
Quando o termo do combate, tal como o peso de uma balança, pende 
(eklínthe, v. 711) favorável aos Olímpios, — as forças de Crono são encadeadas e desterradas e lançadas ao Tártaro. A Titanomaquia, em que  Zeus, para enfrentar o adversário múltiplo se socorre à coligação de outros  Deuses, duplica-se no episódio da luta contra Tifeu, em que Zeus enfrenta só  um adversário só. Também nessa segunda e solitária luta, a Terra, o Céu, o  Mar, o circunvolvente Oceano e o Tártaro retumbam e fervem. Tal como o  estanho e o ferro se derretem e se fundem sob a força metalúrgica do fogo, a  Terra prodigiosa se queimava e se fundia à intensidade do fogo do combate  (vv. 839-68). Vencido, também Tifeu, — tal como os adversários  precedentes — é lançado ao Tártaro. 
Assim, o segundo momento da partilha cósmica consiste no movimento  de uma guerra em que tudo — tanto quanto a sorte das duas forças que se  combatem, — está em jogo, e em que tudo, — até as Divindades Primordiais  e Extremas, originadoras da Totalidade Cósmica, se dissolve e se funde  nessa única oposição na qual se opõem essas duas forças que não são senão  desempenho e empenho de combater. O movimento dessa guerra funde e  revolve tudo em si próprio e transmove tudo em sua própria conflagração.  Até o princípio ontológico e cosmogônico de cisão e de distinção, o Caos, é  traspassado, envolvido e contido no incêndio divino (kaûma dè thespésion  kátekhen kháos, v. 700): — tudo é um só e vivo fogo que, ao medirem-se, as  forças antagônicas conflagram; e, nessa Ekpyrosis que é a guerra, Zeus se  mostra Rei, e seus inimigos se fazem prisioneiros. (Cf. Heráclito, frags. 30 e  53 D.K.) 
Lançar ao Tártaro, ao infra-mundo ou ao além-mundo, os inimigos  vencidos e agrilhoados significa, a rigor, excluí-los da atual fase do mundo.  Os inimigos são vencidos, não extintos; não são mortos porque são divinos e  imortais tanto quanto Zeus e os Deuses Olímpios. Eles apenas podem ser  expulsos e terem o exercício de seus poderes restringido a esferas remotas,  longínquas; e de lá poderiam regressar, se não os obstasse a irredutível  vigilância do espírito de Zeus e suas armas fulminantes. O reinado de Zeus e  a sublime vida dos Olímpios têm o seu fundamento na previdente e  ininterrupta vigilância sobre as monstruosas forças que, para constituírem-se,  esse reinado e essa vida olímpicos combateram, recalcaram e mantêm sob  custódia. De Zeus é o grande espírito, mégas nóos, o que em grego significa  primeiramente: a grande percepção, — o irrelaxável estado de alerta. 
Além das fronteiras do mundo, esses inimigos estão vivos e despertos,  foram apenas despojados da mais alta time que constitui a participação no  cosmo de Zeus. Esses inimigos não pertencem de modo algum a um passado  perdido e irrecuperável. O não-presente não é um pretérito irreversível, mas  é tão-somente o distante e longínquo. Se não pertence mais à atual fase do 
mundo, o não-presente é então o além-mundano, o que se situa na distância  além do círculo do Oceano ou nas profundezas abissais do Tártaro. É esse o  estatuto temporal dos inimigos vencidos de Zeus: eles estão excluídos do  lúcido e bem ordenado tempo de Zeus, porque a própria natureza deles  pertence a uma temporalidade de outra natureza que a de Zeus. Esses  inimigos, forças que são da violência e da desordem, não são compatíveis  com o tempo regular, organizado e cíclico que, sob o nome de Horas (=  Estações), Zeus gerou unido a Têmis (= a Regra que define o direito no  interior da família). Esses inimigos são degredados a essas regiões ônticas  cuja temporalidade amorfa e confusa condiz com a natureza deles. Para a  Cultura da Época Arcaica, note-se bem, o tempo não flui num único e  irreversível sentido, mas cada acontecimento, grande ou pequeno, tem o  tempo que qualitativamente lhe é próprio e que a ele se vincula com patente  e inextricável solidariedade (cf. Trabalhos, vv. 765ss.). E tudo o que com o  selo do Ser vem à luz tem sempre a possibilidade de retornar à luz da  Presença, pelos dons de Memória e das Musas, por meios mágicos (como,  e.g., a descida ao Hades, na Odisséia), ou pelo poder da vidência que,  adquirido mediante certas práticas, dá aos homens acesso ao Invisível e ao  Longínquo. 
No entanto, se, para uma sensibilidade piedosa como a de Hesíodo, a  mais alta time (o mais alto mérito, a mais alta dignidade) consiste na  diligente participação do cosmo de Zeus,—isso não significa que seja má e  pior que a dos homens sob o reinado de Zeus a vida que se vive em outras  fases do Mundo, isto é, em outro kósmos, outra Ordem que não a de Zeus.  Em Os trabalhos e os dias, por duas vezes Hesíodo se refere à vida  paradisíaca e à perfeita beatitude vividas por homens morais em outra fase  do Mundo. A primeira é a referência aos homens da raça de ouro, "que  viveram sob o reinado de Crono, quando ele reinava no céu; e como Deuses  eles viviam tom o ânimo sem tristezas, sem conhecer a fadiga nem a miséria;  nem a velhice vil lhes sobrevinha, mas sempre iguais quanto aos braços e  pernas eles se regozijavam na opulência, distantes de todo o mal; morriam  como subjugados pelo sono, e tinham todos os bens". {Trabalhos, vv. 111- 7.) — A outra é a referência aos Heróis, "a quarta raça sobre a Terra  multinutriz" (Trabalhos, v. 157), os quais "Zeus Cronida instalou nos confins  da Terra, e eles com o ânimo sem tristezas habitam as Ilhas dos Beatíficos,  junto ao Oceano de rodopios profundos". (Trabalhos, vv. 168-71).—Ambas  essas raças vivem num Tempo carregado de força vital, num tempo opulento  e forte, em que o solo fértil produz espontaneamente doces e generosas  colheitas; ambas as raças foram feitas (poíesan, v. 128; poíese, v. 158) por  Zeus e pelos Deuses Olímpios; e ambas vivem sob o reinado de Crono. — 
Portanto, se o tempo instaurado por Zeus é regular, orgânico, bem ajustado e  cíclico, próprio para que nele os homens se empenhem com recompensada  diligência no culto do(s) Deus(es) e no cultivo da(s) Terra(s), — não é de  modo algum o único compatível com a vivência da Ordem, nem o melhor e  o mais feliz dentre os muitos tempos divinos e humanos. 
"Quando os venturosos completaram a fadiga  
"e decidiram pela força as honras dos Titãs,  
"por conselhos da Terra e exortavam o Olímpio  
"longividente Zeus a tomar o poder e ser rei  
 "dos imortais. E bem dividiu entre eles as honras."  
Esses versos da Teogonia (881-6) abrem a descrição principal do terceiro  momento da partilha das honras. Impostos pela força aos Titãs e a Tifeu o  discrímen e a disciplina de Zeus, que no combate se revela o maior e o mais  sábio, segue-se a aclamação de Zeus, pelos Deuses a ele coligados, como o  definitivo árbitro na divisão da opulência. A Grande Partilha se completa na  configuração definitiva em que se firma o cosmo de Zeus, por meio das  diversas núpcias do novo soberano com Potestades primordiais, resultando  dessas uniões os poderes divinos centrai s na vigência da Ordem que é a  terceira e perfeita fase do Mundo. 
O terceiro momento da partilha coincide portanto com a estruturação e  constituição do reino de Zeus. Tal como o segundo momento da partilha se  decide por essa forma de (re-)união que é a Conflagração bélica e nesse  momento a Totalidade, pela força do Fogo do Combate, reingressa em uma  agonística Unidade anterior às Origens (que são múltiplas e até o originante  Cissor-Caos se funde nessa Unidade agônica), — assim também o terceiro  momento da partilha se decide sob a forma das uniões nupciais de Zeus.  Partilhar é unir. Partilha é aproximação e união: a união do corte (confronto  de Céu e Crono), a união da Guerra (em que o Todo arde em Fogo), e as  uniões nupciais de Zeus com diversas Divindades que, como descendentes  das diversas Potestades Originais, são explicitações em que essas Origens  atingem as mais definidas expressões de alguns de seus aspectos. 
Zeus casa-se com Mêtis, a oceanina; com Témis, a uranida; com  Eurínome, a oceanina; com Deméter, a cronida sua irmã; com Memória, a  uranida; com Leto, neta de Céu e Terra; e com outra irmã sua, Hera; — e  assim constitui o seu reino. 
Para apreciarmos o sentido e função de cada uma dessas Potestades,  temos que as apreciar como momentos que elas são de uma particular  linhagem. As três fases cósmicas, ou melhor, essas três expressões em cada  uma das quais determinada Ordem (= um kósmos) se exprime, encadeiam-se 
entre si através de Linhagens. Essas Linhagens são conexões genealógicas  que embora pareçam implicar a sucessão de pai a filho não impõem às fases  cósmicas nenhuma relação de sucessividade, porque os filhos já estão  (implícitos) nos pais assim como os pais estão (explícitos) nos filhos. O  significado de cada casamento de Zeus é dado pelo ponto em que sua  cônjuge surge na Linhagem dela, e pela natureza dessa Linhagem. 
Enraizadas nas Origens distinguem-se três Linhagens: a do Caos, a do  Céu e a do Mar. As Origens constituem-se de: CAOS, que como força de  separação se opõe à força de união EROS, CÉU, que como duplo positivo da  TERRA se opõe ao duplo negativo dela, TÁRTARO; — a Terra como  fundamento e centro (assento inabalável) ladeia-se de duas forças-paredros  Caos e Eros, e duplica-se simetricamente no seu igual, o Céu (assento  inabalável), e na sua contra-imagem, o Tártaro (o anti-assento, queda  abissal). O Tártaro — distante da Terra como a Terra dista do Céu — por  sua natureza abissal tétrica está para o negativo e noturno Caos assim como  o Céu prolifero e fundamentador está para o fecundante Eros. O Tártaro, tão  próximo de Caos, não tem descendência, mas o Caos, sim, se explicita numa  Linhagem. Eros, tão próximo de Céu, não tem descendência, mas o Céu,  sim, se explicita numa Linhagem. Terra, que é o centro e o fulcro de Tudo,  explicita-se não só através da Linhagem de seu igual, o Céu, mas ainda numa  outra esquizogênese procria o Mar, que se explicita em sua própria terceira  Linhagem. Tão múltiplo é o ser do Fundamento que sua explicitação se  impõe em dupla Linhagem centrada em torno de dois eixos: o ser do Céu e o  ser do Mar. — A Linhagem do Caos em nenhum momento cruza com as  duas outras explicitadoras do ser da Terra, i.e., a do Céu e a do Mar, — mas  essas duas Linhagens irmãs cruzam-se múltiplas vezes. 
O Mar, este ser mutável e informe, funda a Linhagem dos que se marcam  predominantemente por essa natureza primordial do Mar. A variabilidade, as  transformações, o disforme e a imensidade são traços pertinentes, sob  aspectos positivos ou negativos, desta Linhagem. Os aspectos positivos do  Mar exprimem-se em Nereu e nas Nereidas. A navegação propícia, fonte de  riquezas, ligação e caminho entre as terras, os ingredientes marinhos das  belas paisagens mediterrâneas, tudo isso se revela nos nomes das Nereidas;  — e não só isso: mutável, imenso e informe, o Mar representa também um  tipo de sabedoria de inesgotáveis recursos, que prevê o imprevisível, que  enxerga o recôndito e o inescrutável; — em suma: uma consciência que,  como o Mar, domina, em todas as suas dimensões, a amplidão temporal e  espacial. Um saber oracular e prático que Nereu — o mais velho filho do  Mar (v. 234) — detém, e cujos diversos aspectos alguns nomes de suas filhas  nomeiam. Muito próximo, por sua natureza aquática, de seu tio Mar, o 
uranida Oceano também detém esse mesmo tipo de sabedoria, que sob a  forma mais plena e depurada se revela no nome e no ser desta oceanina que,  primeira esposa de Zeus, a ele se incorporou: Mêtis, a Sapiência ou Astúcia. 
Imenso, mutável e informe, o Mar gera o Espanto (Thaúmas), de que  nascem as duas surpreendentes Harpias (que são Tempestade e Alígera) e a  rápida íris mensageira dos Deuses (vv. 265-9). — O Mar gera também o  grisalho e viril Fórcis, cujo nome se liga tanto ao de um peixe marinho  quanto ao adjetivo phorkós, "alvacento", "grisalho" (e Fórcis é pai das duas  Graías, as "Velhas", "grisalhas de nascença", vv. 270-1). — O Mar gera  Ketó, cujo nome se liga a kêtos, designativo dos cetáceos e de monstros  aquáticos em geral: desta deusa Ceto unida a Fórcis nascem os monstros,  divinos e de estranhas e compósitas formas, combatidos por Heracles e  outros heróis (vv. 270ss.). — E o Mar gera ainda Euríbia (Euribíe="Larga  Violência"), que, acasalando-se com o uranida Crios, tem entre seus filhos  Astreu, o pai dos astros. 
O Céu, lúcido e dominador de todas as paisagens, funda a Linhagem dos  que se caracterizam predominantemente pela inteligência, lucidez e exercício  do domínio. Entre os primeiros filhos do Céu estão duas das primeiras  esposas de Zeus: Thémis (a Lei que vigora no interior da família, conforme o  modelo indo-europeu) e Mnemosyne (a Memória, mãe das Musas). A  Linhagem do Céu é a dos reis Crono e Zeus. 
Quanto à Linhagem de Caos, já estudada no capítulo anterior, vamos  retomá-la aqui concisamente. A ela pertence tudo o que se marca pela  chancela do Não-Ser, todas as formas de violência das potências negativas e  destrutivas. Os descendentes de Caos não se unem procriativamente a  ninguém (exceto a união de Érebos e Noite, que procriam assim Éter e Dia,  segundo o verso 125, que por isso é dado como não-hesiódico por alguns  editores); eles atuam como potências de cisão, de desagregação, da violência  e da morte, — pois assim se expressa o poder de Caos. 
No episódio em que Crono impõe um limite às atividades prolíficas do  Céu, o golpe cortante da foice recurva incide sobre os médea. (Esta palavra  médea se traduz, conforme o contexto, de dois modos diferentes: se se trata  dos áphthita médea de Zeus ou dos médea de algum outro Deus, traduz-se  por "desígnios imperecíveis" ou por "desígnios"; — se se trata do Céu, então  os médea equivalem a genitália, — talvez porque, como os desígnios do Céu  são só copular e emprenhar, despojá-lo de seus desígnios não é senão castrá 
lo.) Dos médea arrancados ao Céu surgem, de uma parte, dos salpicos  sangrentos caídos sobre a Terra, as Erínias, e, de outra parte, da espuma esperma (aphrós) ejaculada e caída no Mar, Afrodite. As Erínias vêm do  sangue que se derruba no chão como Afrodite vem do esperma que 
docemente bóia no Mar. As Erínias vingadoras de todas as transgressões têm  uma natureza ctônica e próxima da Terra tanto quanto Afrodite cheia de  sorrisos e de enganos (cf. v. 205) tem a natureza mutável e manhosa como a  do Mar. E pela violência com que na ardilosa emboscada ele impõe limites a  seu pai, Crono encontra sua punição num ardil feminino, o de sua esposa  Réia (vv. 471 ss.). Neste episódio em que Réia prepara as condições para  que "o grande Crono de curvo pensar expie as Erínias de seu pai e dos filhos  que engolira" (vv. 472-3) entra em vigor juntamente o poder de Afrodite e o  rigor das Erínias, com os quais a manha feminina executa uma punição. 
Para assegurar que seu poder não será superado e que o domínio que ele  exerce sobre o seu pai não será por sua vez dominado, Zeus recorre a  núpcias que são alianças políticas. Zeus, ao iniciar seu reino, desposa uma  divindade de natureza aquática, Mêtis, e uma de natureza terrestre, Thémis. 
Com esses dois casamentos inaugurais, Zeus garante o seu controle sobre  esses âmbitos donde provieram as potências sob as quais Crono se viu  dominado e superado: o aquático âmbito da manhosa presciência (Afrodite,  Mêtis) e o terrestre âmbito da lei inconcussa (Erínias, Thémis). 
Quando Crono impõe pela primeira vez o seu poder, superando o de seu  pai Céu, instaura-se o âmbito de uma nova ordem, em que vige o  acasalamento por graças e manhas de Afrodite (e não mais pela mera ação  filogenética do cosmogônico Eros, que açulava o Céu) e em que vigem  também as justiceiras Erínias, as belígeras ninfas Freixos e os Gigantes  aguerridos;—um âmbito em que a guerra e enganosos gozos, as batalhas e  ilusórios jogos de amor encontram os seus termos sob o império das  implacáveis Erínias, mantenedoras do equilíbrio e reparadoras de infrações.  — Crono é batido com as mesmas armas com que bateu seu pai: a ação  oblíqua, o curvo pensar. O ardil de Réia, enquanto astúcia feminina, é  homólogo à natureza do Mar donde emerge Afrodite e à natureza da  oceanina Mêtis; — e, enquanto pena de talião que pune com o mesmo  instrumento do crime, o ardil de Réia é a reparação das Erínias, vinculado à  Terra que a foice recurva salpicou de sangue, e homólogo à natureza de  Thémis. (Cf. Esquilo, Prometeu, vv. 209-10, "Thémis e Terra, uma forma  única de muitos nomes".)—São esses dois âmbitos, o Mar e a Terra, de onde  podem surgir a ameaça ao poder e a retaliação à tomada mesma do poder,  que Zeus concilia e controla ao unir-se a Mêtis e a Thémis. 
Não casualmente, Mêtis não é uma nereida, mas uma oceanina. Como  filha do rio que circunvolve a totalidade da Terra, Mêtis representa a  presciência oracular e prática que abarca a totalidade dos recursos do  espírito. Ela é "a que mais sabe dentre Deuses e homens mortais" (v. 887). E,  uma vez que ela é incorporada a Zeus, não há mais recurso ao espírito que 
não seja circunscrito pela consciência de Zeus, nem recurso do espírito que  não esteja contido no espírito de Zeus. Nenhum logro pode ser tramado sem  que se dê ao conhecimento de Zeus. Todos os estratagemas e todos os  desígnios tão logo concebidos em qualquer tempo ou lugar são abarcados  pela grande percepção de Zeus, porque, tendo incorporado a si a própria  Mêtis (Sapiência), Zeus não é um Deus que tenha entre suas faculdades o  recurso à Mêtis, mas é ele próprio o Metíeta Zeus, "Zeus Sapiente" (cf. v.  904). Tal como o rio Oceano cinge com suas correntes circulares a totalidade  da Terra-Fundamento inabalável, também o Metíeta Zeus cinge com sua  grande percepção a totalidade do que é. 
Se com a primeira aliança nupcial Zeus se assegura do domínio sobre o  imprevisível, o instável e o cambiante {Mêtis se traduz por Sapiência, mas  também por Astúcia ou Ardil),—no segundo consórcio Zeus se associa ao  estável, ao inabalável e incontestável: Thémis, filha do Céu e da Terra, e que,  segundo o Prometeu de Esquilo, é um outro nome da própria Terra. 
Tendo-se tornado Metíeta e tendo com isso posto seu reinado  definitivamente ao abrigo das sublevações, Zeus gera Palas Atena, que é ela  própria a Sapiência guerreira. Unindo-se à Lei Ancestral Thémis, Zeus  estabelece ordem, ritmo e medida no seu reinado: gera as Hórai e as Moirai.  No seu livro Le vocabulaire des institutions indo-européennes, Émile  Benveniste define assim este vocábulo: "Na epopéia, entende-se por thémis a  prescrição que fixa os direitos e deveres de cada um sob a autoridade do  chefe do génos, quer na vida cotidiana no interior da casa, quer nas  circunstâncias excepcionais: aliança, casamento, combate. A thémis é o  apanágio de basileús, que é de origem celeste, e o plural thémistes indica o  conjunto destas prescrições, código inspirado pelos Deuses, leis não-escritas,  coletânea de ditados, sentenças dadas pelos oráculos, que fixam na  consciência do juiz (no caso, o chefe da família) a conduta a manter todas as  vezes que a ordem do génos está em jogo". 
Filhas de Thémis, as Hórai ("Estações") são três: Eqüidade, Justiça e a  viçosa Paz (v. 902). Os nomes das três estações põem em evidência quanto o  pensamento arcaico apreende como uma Ordem única e unitária o que nós  cindimos em distinções como ordem político-social, ordem natural e ordem  temporal. Uma crença profunda de Hesíodo era a de que as injustiças sociais  acarretavam não só perturbações e danos às forças produtivas da Natureza  mas também subvertiam a própria ordem temporal. As Hórai, portanto,  nascidas de Zeus e Thémis, têm por função instaurar a boa distribuição dos  bens sociais, as boas relações entre homens e a ordem que ritma as forças  produtivas da Natureza. — As Moirai (na tradução latina, as Parcas), "a  quem mais deu honra o sábio Zeus" (v. 904), fixam aos homens mortais os 
seus lotes de bem e de mal. Enquanto filhas de Zeus e Thémis, as Moirai  representam a Fatalidade sob o aspecto positivo de configuração e ordenação  dos destinos humanos segundo um peso e medida divinos; sob o aspecto  negativo, essas Moirai são filhas da Noite (vv. 217-9) e representam a  sofrida experiência do restrito e inexorável lote de bem e de mal a que cada  homem tem que se submeter como seu único destino. 
As Hórai regram a Natureza, o tempo e as ações humanas integrando-os  num todo uno e indiviso, que será harmonioso ou terrível segundo nele os  homens concorram com ou sem o senso de justiça. As Moirai regram o que  de bem e de mal aos homens é dado viver, segundo uma medida divina pela  qual a vida humana (feliz ou desventurada) encontra sua razão de ser e se  integra na ordem maior de Zeus. 
No seu terceiro casamento, Zeus desposa, como da primeira vez, uma  Deusa de natureza aquática: a oceanina Eurínome, irmã de Mêtis (cf. v. 358)  e cuja aparência desperta forte desejo amoroso (polyératon eîdos ékhousa, v.  908). Eury-nóme significa "Grande-Partilha" e esta oceanina unida a Zeus  gera as Graças (Khárites), de cujo olhar esparge-se Eros solta-membros (vv.  910-1) — esse mesmo Eros que participa do séquito da emergente Afrodite  (v. 201) e com esse mesmo epíteto com que é nomeado como Potestade  integrante da Quádrupla Origem da Totalidade Cósmica (v. 122). — Esta  oceanina Grande-Partilha, explicitada por suas filhas cuja beleza (como a  dela própria) incute amor e desejo, revela nesta beleza afrodisíaca o lado  gemelar e outro da Guerra (das Erínias, das ninfas Freixos e dos Gigantes  combatentes, que nascem todos eles juntamente com Afrodite). Em seu  âmbito e seus encantos aquáticos e afrodisíacos, a amorosa oceanina  Eurynóme constitui, com a própria Guerra (este segundo momento da  Grande-Partilha das timaí), o processo agonístico e cósmico da Grande Partilha das honras. Fecundada agora pelo firme e seguro ser de Zeus, a  Grande-Partilha gera as desejadas Graças. 
No seu quarto casamento, Zeus desposa, como no segundo, uma Deusa  de natureza terrestre: a multinutriz Deméter(v.912), sua própria irmã. Se  Thémis explicita a Terra sob o aspecto do inabalável e da firmeza  incontestável, Deméter a explicita enquanto forças ctônicas fecundas e  produtoras de alimento. Assim, a filha de Deméter, Perséfone, se associa a  Hades, já que os mortos e a fecundidade subsolar pertencem ao mesmo  reino. Os dons de Deméter, nutrientes da vida, provêm da escura Terra aonde  descem os mortos e onde eles conservam e fazem circular e aflorar suas  forças úberes. Por isso o Sapiente Zeus dá ao Hades a filha que tem com  Deméter (v. 914). 
No quinto e sexto casamentos, nos cônjuges de Zeus prepondera a 
natureza urânica. Com Mnemosyne (Memória) a lucidez e a sobranceria do  Céu transparecem na natureza das nove filhas, as Musas elas-mesmas. E com  Leto, filha das uranidas Febe (Phoíbe - "Luminosa") e Coios (duplo de  Crios, este pai de Astreu e avô dos Astros), a luminosidade e a sobranceria  do Céu transparecem na ímpar beleza de Apoio e Ártemis, os mais  invejáveis (ou desejáveis) dentre todos os que descendem do Céu  (himeróenta gónon peri pánton Ouraniónon, v. 919). 
Completando a constituição de seu reino, por último (loisthotáten, v.  921), Zeus desposa Hera, outra irmã sua, de quem nascem Juventude (Hebe),  Ares e Ilitiia. A Juventude e a Guerra estão, para os gregos, sempre  vinculadas entre si, porque a imagem grega do guerreiro é sempre a do  koûros (o jovem). E o Deus da Guerra, Ares, que traz os massacres,  depredações e morte, se liga, — como neste verso 922, — à Deusa Ilitiia,  que preside aos partos: assim as gerações dos homens adolescem (Hebe),  comprazem-se na guerra (Ares) e se renovam (Ilitiia). 
Com o reino de Zeus completo e firme, completa-se e firma-se a ordem  da Totalidade Cósmica, que nele se centra. Ao instaurar-se e manter-se, o  reinado de Zeus não implica a destruição e aniquilação dos reinos de Crono e  do Céu, mas, ao contrário, delimita-os, define-lhes com maior precisão o  âmbito, e, — de um certo modo e até um certo ponto, — engloba-os em si.  Cada uma das três fases cósmicas delimita a precedente e engloba-a em  parte. No reinado de Crono como no de Zeus, o Céu perdura com as mesmas  funções que ele sempre teve e desempenhou: cobrir fecundantemente toda a  Terra e ser para os Deuses venturosos o assento irresvalável de sempre (vv.  127-8). Acontece que Crono, ao afirmar a força do pensamento flexuoso,  define-se tanto quanto a si mesmo também ao âmbito próprio das  fecundantes forças urânicas, instauradoras e mantenedoras das formas  terrestres e divinas da vida. No confronto em que Crono define sua própria  time (seu âmbito, sua natureza e valor), ele define também e fatalmente a  time daquele cujo modo de ser se confronta com seu modo de ser. 
Tal como perdura o Céu, Crono de curvo pensar, — que se instaura pelo  confronto e nas fronteiras com as úberes forças do Céu-Pai primordial, —  também perdura para sempre com o seu curvo pensar e com sua proximidade  das ubertosas forças primordiais: ele reina nessa época imperecível e além 
mundana (i.e., além do reino de Zeus) na qual o solo espontaneamente  produz generosas colheitas todo o ano, reina sobre homens que não  conhecem a fadiga nem a velhice nem a morte, — num tempo opulento e  carregado das urânicas forças instauradoras e mantenedoras da vida. Cada  Deus vive num tempo cujas qualidades, como os mais próprios e exclusivos  privilégios desse Deus (i.e., as suas timaí), manifestam-se como 
qualificações constitutivas desse Deus. Por isso, as três fases cósmicas  permanecem, em suas múltiplas inter-relações, irredutíveis à cronologia  linear pautada por nossa moderna concepção quantitativa e abstrata de  tempo. 
O reinado de Crono tem, por seu próprio ser e natureza, um âmbito  restrito, que se curva em torno de si mesmo e assim se delimita. Não há em  toda a Teogonia referência de que ele tenha exercido o poder fora do âmbito  de seu otkos, i.e., de sua mulher e filhos. O seu confronto com seu pai se dá  através de um ardil (o que é próprio do seu modo de ser) mas não liberta a  todos os seus irmãos, cuja condição carcerária em alguns casos não é  alterada pela ação de Crono. É preciso que Zeus "os remeta das trevas  subterrâneas para a luz livre" (cf. v. 669); eles aí permaneciam, no útero  terrestre, desde que foram concebidos pelo florescente Céu (i.e., desde que o  Céu aí "a todos ocultava e não os permitia virem à luz", v. 157). A soberania  de Crono, portanto, permanece, desde que se instaurou, indiferente a tudo o  que ultrapassa o seu restrito insulamento em si mesma: ele reina numa ilha,  as ilhas dos Bem-Aventurados que desfrutam todos os benefícios de habitar  o tempo forte das opulentas Proximidades das Origens. 
O reinado de Zeus é o mandálico centro da totalidade cósmica porque ele  é o único cujo centro se dá como a mais plena manifestação do espírito.  Como sua filha primogênita Palas Atena, Zeus se caracteriza pela vontade  centrada no espírito (epí-phrona boulén, v. 896); o que constitui a essência  de suas ações é serem fundadas e centradas no espírito (epi-phrosyneisin, v.  658); as forças que por Zeus são combativas guiam-se por uma atenta  percepção e pela vontade centrada no espírito (ateneî te nóoi kai epíphroni  boulêi, v. 661). — O Metíeta Zeus é a Sapiência que, semelhante ao rio  Oceano, abarca a totalidade do que é. As armas de Zeus são o Clarão, o  Trovão e o Raio, que ele libertou da abstrusa virtualidade em que jaziam no  útero da Terra (Gaîa kekeúthei, v. 505; cf. Gaíes en keuthmôni, v. 158) e  que são a mais pura e pujante expressão (e explicitação) da força do espírito  (e do ser do Céu de que Zeus descende). 
Tendo ele completado e coroado a Grande-Partilha das honras, o reinado  de Zeus é a grande percepção (mégas nóos) que fixa cada Deus em seu  âmbito,—i.e., que sobrevê a divisão da Opulência do Ser nessa Grande  Partilha dos privilégios de valor e de poder que constituem o ser de cada  Deus.
VII 
MEMÓRIA E MOÎRA 
Hesíodo retoma a narração do nascimento das Musas (vv. 53-67) no  contexto do catálogo das esposas de Zeus (vv. 915-7). Memória é a quinta  união de Zeus. Que significa esta união e o fato de ser a quinta? 
Com Mêtis, o soberano do Olimpo incorpora a si uma Sapiência que lhe  assegura o poder sobre o imprevisível, sobre todos os ardis que em todos os  tempos e em todos os lugares se possam tramar, pois com Mêtis ele conhece  o bem e o mal (v. 900) num domínio que, cambiante e instável, tem tanta  afinidade com a natureza do Mar. — Com Thémis, o novo soberano gera a  Ordenação interior de seu reinado, a Ordem em todos os aspectos nomeados  pelos nomes de suas filhas Hórai e Moîrai, que dosam e regram a  distribuição de bem e de mal (v. 906), pois com Thémis ele assegura ao seu  poder um domínio imutável e estável, afim com a natureza fundamental da  Terra. — Com Eurynóme, filha do Oceano, a Grande-Partilha configuradora  da Totalidade Cósmica assume a forma que desperta muito desejo amoroso  (v. 908): com a Grande-Partilha o soberano olímpio gera as Graças de  esplender, de alegrar-se e da amorosa participação na opulência (cf. v. 909),  estas Graças companheiras das Musas (v. 64) e cujo olhar infunde o Amor  solta-membros (vv. 910-1). — Com Deméter, o novo soberano garante a  circulação das forças entre o mundo subterrâneo dos mortos e o âmbito  terrestre dos vivos e garante assim, no equilíbrio dessa imbricação entre vida  e morte, a manutenção do hemisfério dos vivos: Deméter, alimentadora da  vida, Senhora que é das forças ctônicas, gera Perséfone que reina sobre os  mortos. — Com as quatro primeiras núpcias, portanto, o reinado de Zeus  compõe-se com a estabilidade insubvertível dada pela Astúcia de Mêtis, com  a Ordenação interior dada pela Lei de Thémis, com as Graças de esplender,  alegrar-se e ser opulento, dadas pela Grande-Partilha, e com o equilíbrio  entre as pulsações da vida e as latências da morte dado pela terrena e  maternal Deméter. 
No catálogo das esposas de Zeus, Memória está entre Deméter e Leto. Como Deméter, Memória assegura a circulação das forças entre o  domínio do Invisível e o do Visível, já que Memória é que, em cada  mo(vi)mento de cada ente, decide entre o ocultamento do Oblívio e a luz da  Presença. Como Leto, mãe dos mais belos descendentes do Céu (v. 919),  tem nos seus filhos a mais perfeita forma explicitadora da luminosidade e  sobranceria do Céu ancestral, a uranida Memória tem na mais forte e  reveladora luminosidade o domínio próprio de sua função.
Com sua quinta união, Zeus confere ao seu poder o domínio da  luminosidade desveladora, a indeclinável permanência no âmbito da  aparição, e assim o reinado de Zeus torna-se a vigência da mais vigorosa  verdade (a mais vigorosa negação do Esquecimento em que se dá o Não 
Ser), torna-se o poder esplender infatigavelmente. Como a mais vigorosa  manifestação da Presença, o soberano cônjuge de Memória é a grande  percepção que se deleita com a voz uníssona das Musas a dizerem os seres  presentes, futuros e pretéritos (cf. vv. 36-7). 
O poder de Zeus, centrado no espírito (epí-phron), dá-se como o gerador  e o sujeito dessa grande percepção (mégan nóon) em que seu cônjuge  Memória gera as Forças do Canto (= Musas) pelas quais os nomes-numes se  fazem presentes como presenças configuradoras da totalidade do que se  desvela e do que não se desvela. 
Longe de se esgotar em sua acepção psicológica, Memória é uma  Potência cósmica, que nasce da cópula do Céu e da Terra, esses  Fundamentos inabaláveis dos Deuses e de Tudo, assim como deles é que  nascem a Visão (Théia), a Fluência (Rhéia), a Luminosidade (Phoíbe) e a  Instauradora-Nutriz (Téthys) (cf. vv. 135-6). 
Memória, que mantém as ações e os seres na luz da Presença enquanto  eles se dão como não-esquecimento (a-létheia), gera de Zeus Pai as Forças  do Canto, cuja função é nomear-presentificar-gloriar tanto quanto a de deixar  cair no Oblívio e assim ser encoberto pelo noturno Não-Ser tudo o que não  reclama a luz da Presença. A audição deste Canto, que ao irromper quebra a  Noite do Não-Ser (vv. 7-10), é o regozijo de Zeus (vv. 37 e 51), que, unido a  Memória, o gera. Como o poder de Zeus que se estende de ponta a ponta no  Universo, este Canto para o regozijo de Zeus não conhece os limites entre  presente, futuro e passado, mas flui infatigável (akámatos rhéei, v. 39) e,  cantando, nomeia-presentifica-gloria o próprio poder e reino de Zeus (cf. vv.  71-5). Sujeito da percepção deste Canto, Zeus é também o seu objeto.  Genitor que funda as Forças deste Canto, Zeus tem o seu próprio ser e poder  fundados pelo poder deste Canto. 
A união de Zeus com Memória coloca certos problemas com que já  deparamos antes: o da imanência recíproca entre linguagem e ser (que, como  vimos nos caps. III e IV, não é senão a recíproca imanência entre linguagem  e poder); o da imbricação do tempo na complexão de linguagem, ser e poder;  o de uma concepção de tempo que se estrutura sobre a concomitância e  simultaneidade sem quaisquer indícios da relação de causa e efeito; o de uma  concepção segundo a qual o tempo sob o aspecto qualitativo se apresenta  ricamente diversificado enquanto sob o aspecto quantitativo ele dificilmente  se deixa apreender pelo rigor da medição, — uma concepção de tempo na 
qual, portanto, tendem a se desfazerem e a perderem o sentido as relações de  anterioridade e de posterioridade. 
O traço mais marcante do pensamento que organiza a Teogonia  hesiódica é o da continuidade, de tal forma que nela cada questão parece  implicar todas as outras questões, cada aspecto do ser parece implicar todos  os outros aspectos, e a solução de cada problema pertinente à estrutura e à  função desse pensamento parece implicar a solução de todos os outros  problemas desse tipo. Isto porque essa continuidade pela qual esse  pensamento se dirige e se organiza não é simples, linear e unidirecional, mas  multidirecional, multívoca e complexa. A própria continuidade genealógica  entre genitores e gerados não é simples e linear como uma mera relação de  causa e efeito, de antecedente e conseqüente; porque a relação entre  genitores e gerados não se dá fundamentalmente como uma referência  unívoca de uns a outros, mas como uma imanência essencial da natureza de  uns na natureza de outros: a natureza dos filhos está implicada e implícita na  dos pais assim como a dos pais continua e se explicita na dos filhos. Sob  certos aspectos os pais não são anteriores aos filhos, mas são em muitos  casos determinados e marcados por eles ou por "pósteros", como se fossem  todos "contemporâneos". Essa continuidade é uma tal contigüidade, que é  como se todos esses múltiplos tempos diversamente qualificados devessem  antes ser entendidos por nós como "contemporâneos", de preferência a serem  entendidos como sucessivos — entendidos sim como tempos compostos de  momentos imóveis, presenças permanentes em si mesmos, e não entendidos  como sucessão, fluxo e escoamento. 
Memória, filha da Terra e do Céu, esta na raiz da natureza da Terra e do  Céu, esses Fundamentos eternamente presentes em si mesmos, e está na raiz  de todos os entes e eventos com os quais se configura a Totalidade Cósmica,  que já que esta totalidade se compõe de uma simultânea sucessão de  momentos imóveis, um conjunto de séries a cruzarem-se de mo(vi)mentos de  inextinguíveis esplendores, — esplendores que as trevas obliviais do Não 
Ser não encobrem porque são o próprio ser divino, recolhidos por Memória e  esplendentes ao serem nomeados pelos nomes-numes nascidos da Memória e  de Zeus, as Musas. 
Essa totalidade sendo presidida pelo Conflito, e a constituição de cada  ser e cada Deus sendo decidida e delimitada pela Guerra, não é difícil  compreendermos que cada ser divino é segundo a sua força de ser ou  segundo lhe é dado ser pelo arbítrio soberano de Zeus, e inclusive Zeus é  segundo a sua força de ser. Tudo se decidindo, se definindo e se fundando  pela Guerra e por Zeus que se decide, se define e se funda em seu poder  através da Guerra, todos os entes e eventos se impõem em seu âmbito por 
sua própria força de ser ou pela força máxima constituída por Zeus; tudo são  forças vivas e divinas cuja harmonia que as compõe é a Guerra. Os Deuses  dividem entre si a Opulência do Ser por uma medição de forças e assim  definem os privilégios e atributos que os constituem; nessa decisiva e  definitiva medição de forças a força de cada um é a causa de cada um ser o  que é—e simultaneamente a causa de cada um dos outros ser o que cada um  dos outros é. Assim, cada um é a causa de seu próprio evento — e  simultaneamente a causa de todos os outros eventos que a ele estiverem  ligados. Para cada ente ou evento não há outra causa senão ele mesmo — e,  pelo fato de ele ser a única causa dele mesmo, ele também é causa de todos  os outros entes e eventos ligados a ele, os quais entes ou eventos nada têm  por causa senão a si próprios. E a relação entre os entes e os eventos é da  ordem da concomitância, não a de causa e efeito. 
Por exemplo, o poder e o ser de Zeus têm por causa a força de poder e de  ser de Zeus — tanto quanto é causa do poder e do ser dos outros Deuses a  ele ligados, os quais têm por causa a força que cada um deles tem de poder e  ser. No entanto, o ser e o poder de Zeus têm por causa — além de si mesmos  — outros seres e poderes concomitantes que são causas de si mesmos e que  têm por causa o ser e o poder de Zeus. 
A oceanina Estige, unida a Palas (híbrido descendente do Mar e do Céu),  gerou os dois pares Zelo e Vitória, e Poder e Violência; por desígnios de seu  pai Oceano (v. 398), ela decidiu (eboúleuse, v. 389) pôr esses quatro filhos  na companhia de Zeus quando ele conclamava todos os imortais ao Olimpo  para o combate contra os Titãs (vv. 390-3). E por ter sido Estige a primeira  dos imortais a atender à conclamação (v. 397), "Zeus a honrou e lhe deu  supremos dons: fez dela própria o grande juramento dos Deuses e seus filhos  residirem para sempre com ele" (vv. 399-401). 
Portanto, Estige é a "Deusa odiosa aos imortais, a terrível Estige" (vv.  775-6), "o grande flagelo para os Deuses" (v. 793), o "juramento", a  "imperecível água ogígia que brota de abrupta região" (vv. 805-6) — 1) por  causa de si mesma, que decidiu e pôde, primeira dentre todos, aliar-se a  Zeus, — e 2) por causa de Zeus, que em sua magnanimidade quis dar-lhe  "supremos dons". — Por outro lado, Zeus é Zeus detentor de Zelo e Vitória,  Poder e Violência, — 1) porque Zeus é "o mais glorioso e o maior dos  Deuses perenes" (v. 548), — e 2) porque "assim decidiu Estige, a  imperecível Oceanina" (v. 389). 
Mas os próprios Zelo e Vitória, os próprios Poder e Violência não  constituiriam o tão alto e honrado privilégio que constituem se não os  honrasse e os privilegiasse Zeus com o fato de mantê-los em sua companhia,  onde quer que esteja e por onde quer que vá. Basta a mera leitura destes 
versos 383-403 para que se perceba claramente que esses quatro filhos de  Estige são quem são por serem quem são e também por Zeus que os faz ser  quem são; mas Zeus é quem é por ser quem é e também por esses quatro que  o fazem ser quem é. 
Nesta seção da Teogonia consagrada a Estige e seus filhos (vv. 383-403)  evidencia-se com a maior nitidez de que modo a relação de concomitância  coordena e vincula entre si os entes e eventos, sem que se possa encontrar  neles quaisquer indícios da relação de causa e efeito. Não há causa única  nem sequer causa preponderante, pois cada ser divino é causa sui mas não  poderia ser ele próprio senão no grande concerto cósmico (o Canto que para  o deleite de Zeus as Musas cantam) composto por ele próprio e por inúmeros  outros seres divinos não só diferentes dele próprio mas ainda freqüentemente  em diferença com ele próprio. 
Cada Deus é simultaneamente causa sui e causa de tudo o que a ele se  refira, mesmo quando nesse conjunto de entes e eventos que a ele se refere  encontram-se outros Deuses que são, também cada um destes, causa sui e  causa de tudo o que a cada um deles se refira. — Portanto, num universo  cuja cosmologia pode ser narrada e só é narrada como uma teogonia, i.e.,  num universo constituído unicamente de forças divinas e cujas relações  estruturais só se dão como inter-relações divinas, como con-vívio e com-bate  de Deuses e famílias de Deuses entre si, — nesse universo  constitucionalmente e exclusivamente divino —, todos os entes (i.e., Deuses)  são, em todos os mo(vi)mentos e em todos os seus aspectos, sempre causas,  nunca efeitos. Não é possível, portanto, falar-se de uma relação de causa e  efeito: nesse universo o Ser se dá sempre, em cada caso, como causa sui et  omnium ceterorum (Deorum). Cada Deus sendo, por sua definição essencial,  causa de si mesmo e de tudo o mais que a ele se refira, nada nesse universo  multidivino se deixa subsumir como efeito porque tudo nesse universo é  sempre causa. Causa à qual corresponde nenhum efeito além de si mesma e  de outras causas que são—tanto quanto ela—presenças absolutas e não  causadas senão por si mesmas. 
Neste caso, a palavra "causa" está sendo usada num sentido transposto; a  palavra "causa" está sendo empregada como uma metáfora a que se recorre  para se descrever a condição da múltipla presença divina. Uma "causa", cujo  efeito é ela mesma e outros seres que são eles próprios causas de si mesmos,  não pode ser considerada como "causa" senão por um uso metafórico (i.e.,  transposto e deslocado) da palavra "causa". E com este uso propositalmente  deslocado desta palavra "causa" procuro estabelecer uma comparação entre  nossa hodierna e habitual apreensão e compreensão dos entes e das coisas e a  experiência grega arcaica na qual o Ser se manifesta como numinoso e na 
qual o universo não é senão um conjunto não-enumerável de Teofanias. A concomitância como princípio de organização e inter-relação dos  eventos mostra-se com particular nitidez no caso das relações entre Zeus,  Estige e seus quatro filhos. A vitória e o poder de Zeus, o poder de Estige e o  raro apanágio (o da constante companhia de Zeus) que honra os quatro filhos  de Estige não poderiam ser senão em função uns dos outros. Mas a vitória de Zeus na Titanomaquia não tem por causa preponderante  o fato de Estige ter-se decidido alinhar seus filhos Zelo e Vitória, Poder e  Violência nas falanges de Zeus. Zeus ele mesmo é kydistos (v. 548), i.e., o  que detém o maior e mais forte kydos. Embora tradicionalmente traduzido,  como se fosse sinônimo de kléos, por "glória", kydos é o signo momentâneo1 com que um guerreiro é marcado por um Deus que o favorece, signo mágico  da infalível supremacia no combate, e que é percebido, tão logo o Deus  numa batalha o instaura sobre alguém, tanto por esse que é assim favorecido  quanto por seu adversário e pelos demais que estão ao redor. A eficácia do  kydos é momentânea, válida para esse instante de perigo em plena batalha no  qual o Deus preserva e faz prevalecer como vitorioso um mortal a quem  privilegia com sua preferência. O kydos de Zeus não é de eficácia  temporária, porque Zeus é a própria fonte de kydos e por Zeus ou por sua  filha Atena é que esse signo talismânico de vitória é transmitido aos mortais.  Zeus não detém um kydos que ele tenha recebido ou tenha arrebatado por seu  esforço: Zeus é o próprio kydos, e suas preferências e suas intenções é que  constituem para os mortais a origem e a fonte de kydos, sinal prodigioso e  mágico que cerca de prodígios o guerreiro a quem assinala para a vitória.  Esse poder talismânico, que um dia é concedido a um e outro dia a outro,  tem sua permanente e inesgotável fonte no imutável kydos que é o caráter  mesmo de Zeus kydistos. Como então não seria Zeus kydistos o vencedor na  batalha contra os Titãs e contra seus demais inimigos?  
1) Cf. Benveniste, Emile. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris, Minuit, 1969, 22  vol., pp. 57ss.  
No entanto, além de Zeus ser por si mesmo essencialmente assinalado  para a Vitória na guerra, dado o seu caráter kydistos, concorrem também  para essa Vitória e Poder de Zeus sobre os Titãs (e além de Vitória e Poder  serem filhos de Estige e por decisão desta serem postos à disposição e ao  lado de Zeus) os seguintes fatos:  
1) a alertada previdência que é própria da natureza de Zeus e com a qual  ele poderá superar a presciência e a alertada previdência da própria Mêtis,  surpreendendo-a com palavras sedutoras e inesperada manobra, e engolindo-
a, i.e., incorporando-a a si mesmo mediante esse ato pelo qual Zeus se revela  ter mais mêtis (presciência, astúcia) que a própria Mêtis (= Presciência,  Astúcia). (Cf. a sedução e assimilação de Mêtis por Zeus nos vv. 889-90 e  899-900.); 
2) as advertências e indicações da Terra e do Céu que alertam Zeus  quanto ao porvir: Terra aconselha o Cronida a libertar e tentar  engajarem suas falanges os Centímanos Cotos, Briareu e Giges (vv.  626-9); Terra e Céu aconselham-no a incorporar a si a própria Mêtis  para não se ver superado e dominado por um filho seu e dela (vv. 891-  8); por esses conselhos é que Zeus — entre outras "causas" —  conquista e conserva o Poder e a Vitória;  
3) o auxílio dos Centímanos Cotos, Briareu e Giges, que Zeus não só  liberta de suas cadeias subterrâneas mas ainda lhes oferece, com a  finalidade de celebrar com eles um pacto e uma aliança de irrompível  fidelidade, néctar e ambrosia, i.e., a condição divina. Os Centímanos,  em retribuição a este benefício com que Zeus lhes outorga simultaneamente  o acesso à luz livre do Céu e à imortalidade dada pelos  alimentos divinos (vv. 639-41), desdobram suas forças na batalha  contra os Titãs (vv. 669-75) e cobrem-nos com os golpes dos  projéteis arremessados por seus três vezes trezentos braços (vv. 713-  7), e assim—entre outras "causas" — asseguram a Zeus a conquista  do Poder e da Vitória;  
4) o auxílio dos Ciclopes Raio, Trovão e Relâmpago, a quem Zeus  libertou de aniquilantes prisões subterrâneas (oloôn hypò desmôn, v.  501), e que, "lembrados dessa graça benéfica" (v. 503), deram-lhe o  Trovão, o Raio e o Relâmpago (vv. 504-5), essas armas com as quais  Zeus se faz forte e pode reinar (v. 506) e as quais a Terra prodigiosa  escondia em seu críptico seio até que Zeus as descobrisse e libertasse  (v. 505). Deste modo, os Ciclopes Raio, Trovão e Relâmpago, —  cujos nomes os revelam como sendo não só os fabricantes e forjadores  das armas de soberania de Zeus, mas ainda essas armas mesmas,  trovão, relâmpago e raio, — são artífices da Vitória de Zeus, já que  é com o recurso a esses instrumentos de triunfo que Zeus assegura  sua Vitória sobre os Titãs (v. 687) e sobre Tifeu (vv. 853-68).  
As armas de Zeus são tanto atributos do Ser de Zeus quanto são também  atributos do Ser de Zeus determinadas faculdades e qualificações "mentais" e  "psíquicas" de Zeus—e, no entanto, tanto essas armas 
quanto essas "faculdades mentais" são, além de atributos constitutivos da  natureza mesma de Zeus, Divindades com esfera de existência e de  atribuições própria. Assim, os Ciclopes Raio, Relâmpago e Trovão são  divindades com uma esfera de existência e de atribuições e de tribulações  própria — ao mesmo tempo que são também "armas", i.é., atributos da  natureza de Zeus. Assim, a oceanina Mêtis é tanto um âmbito de existência e  de essência próprio a ela quanto é afinal uma qualificação ou faculdade que  o espírito de Zeus tem no mais alto grau, que em lugar nenhum existe e vige  mais plenamente e mais eficazmente que no próprio espírito de Zeus. 
Se para a Vitória de Zeus concorrem todas essas causas (as quatro que  acabamos de enumerar mais as duas antes enumeradas, a saber, a decisão de  Estige e o caráter kydistos de Zeus), ocorre que essas causas concorrentes  (i.e., concomitantes) não são mais exteriores e alheias à essência mesma de  Zeus que o próprio Zeus em sua mesma essência; não são exteriores e  alheias e no entanto são outras Divindades que não o próprio Zeus em sua  mesma essência. — Na verdade, o pensamento mítico, servindo-se de figuras  não-conceituais, de imagens concretas e de ideações plásticas, servindo-se de  relatos e à fábulas (i.é., disto em que se constituem propriamente os mythoi  e os hieroì lógoi, os "mitos" e os "relatos sagrados"), coloca em seus  próprios termos (i.e., em termos míticos) o problema da relação entre a  Alteridade e a Ipseidade: Zeus é ele-Mesmo e é o Outro; o Outro é tanto  Outro quanto é o Mesmo. 
Já havíamos nos referido anteriormente à importância fulcral e ao vigor  que tem na organização do pensamento arcaico a coincidentia oppositorum.  Evidencia-se agora que a concomitância como forma de relação entre os  eventos (a qual exclui e substitui a relação de causa e efeito) implica o  problema da relação entre Alteridade e Ipseidade: é o fato de a Alteridade e a  Ipseidade darem-se tanto como coincidência quanto como diferença que  torna possível a relação de concomitância entre os entes e eventos excluir e  substituir a relação de causa e efeito. 
A Alteridade coincide com a Ipseidade tanto quanto dela difere: o Outro  é o Mesmo (coincide com o Mesmo) tanto quanto é — na referência ao  Mesmo — o Outro (difere de si Mesmo). Zeus é os ciclopes e os ciclopes  são atributos da essência de Zeus tanto quanto os ciclopes são os ciclopes (e  não Zeus) e Zeus é Zeus (e não os ciclopes). Igualmente, Mêtis é uma  faculdade do espírito de Zeus e Zeus tem incorporada a seu espírito essa  faculdade nomeada Mêtis tanto quanto Mêtis é Mêtis com uma existência e  uma história outras que não são nem a existência nem a história de Zeus. 
A coincidentia oppositorum da Alteridade e da Ipseidade, pela qual  ambos esses termos coincidem tanto quanto e ao mesmo tempo que diferem 
entre si, é a condição que possibilita a relação de concomitância entre os  entes e eventos, uma concomitância onto-cronológica (i.e., tanto temporal  quanto ontogenética) que substitui a relação de causa e efeito. A imbricação  do tempo na complexão de linguagem-ser-e-poder revela agora, na condição  mesma pela qual essa imbricação se dá, o aspecto enantiológico que assume  a manifestação do Ser para o pensamento da Época Arcaica. 
Não se pode, no entanto, deixar de observar que a coincidência-diferença  entre Alteridade e Ipseidade se funda (sob certos aspectos) nessa noção  fundamental de génos com a qual se funda e se estrutura a Teogonia mesma  enquanto Teogonia, i.e., enquanto uma estrutura narrativo-descritiva,  enquanto uma canção estruturada e uma estruturada visão de mundo. A  possibilidade de o indivíduo ser ele-Mesmo tanto quanto Outro-que-não-ele  só se dá enquanto o Ser desse indivíduo é não uma natureza pessoal (i.e., de  uma pessoa) mas uma natureza familial (i.e., de um génos), enquanto esse  indivíduo é não a expressão única, peculiar e insubstituível de seu próprio  ser, mas a expressão em que momentaneamente se manifesta o ser do  Fundamento-Genitor, i.e., a natureza Fundamental do génos. 
Que significa génos? Essa palavra é freqüentemente traduzida por  "raça", ou por "estirpe" ou por "família", mas nenhuma dessas traduções,  embora estritamente corretas, dá conta de todo o significado de génos — justamente por serem restritas, pois é isso e muito mais além disso. A  palavra génos se liga etimológica e semanticamente ao verbo gígnomai, que  diz "nascer" e também "tornar-se" ou "devir", portanto em génos há a idéia  de nascer e de tornar-se conforme as determinações de nascimento; mas o  substantivo génos designa um grupo de indivíduos ligados entre si por laços  de nascimento e pela comunhão de uma natureza dada por nascimento,  natureza essa que os constitui mais decisivamente que qualquer outro fator.  Do ponto de vista do génos, o indivíduo se define e vale sobretudo pelo seu  nascimento, que lhe constitui a natureza, e esse indivíduo não é senão uma  expressão momentânea dessa natureza: todas as ações, decisões, falhas e  êxitos do indivíduo têm fonte não na individualidade dele mas nessa  natureza supra-individual que caracteriza o génos. 
Assim, do ponto de vista do génos, em Zeus, nos ciclopes e em Mêtis  (para ficarmos só com os exemplos focalizados acima) exprime-se uma  mesma natureza, um mesmo Ser: eles são descendentes do Céu e da Terra, e,  portanto, têm uma natureza comum que os constitui fundamentalmente e na  qual todos eles coincidem, embora possam enquanto individualidades e sob  outros aspectos diferir. 
As três linhagens, que estruturam a Teogonia hesiódica, estruturam-se  por sua vez em sublinhagens, i.e., as três grandes "famílias" se estruturam 
em grupos familiares menores. Ora, esses grupos menores compartilham a  natureza comum da grande família em que comungam a origem, e desses  grupos menores cada grupo tem por sua vez uma natureza própria e peculiar,  a qual se inscreve fundamentalmente na natureza comum supra grupal e que  por seu turno circunscreve e determina supra-individualmente as ações e  caracteres dos indivíduos circunscritos por esse grupo. É na vigência do  génos como fator de estruturação cosmo-teogônica (tal como, noutro plano,  é eixo da organização social) que vigora a lei básica da Teogonia hesiódica  segundo a qual a descendência é sempre uma explicitação da natureza dos  genitores. 
No entanto, esse Grande Cosmo vivente e divino como um único tecido  composto de células que são as teofanias,—esse Grande Cosmo centra-se em  múltiplos centros: cada um dos Deuses-unidades que o constituem é em si  mesmo essencialmente um centro de convergência de honras, veneranda  fonte de poderes e de forças que infunde não só o sentimento de respeito ao  homem, mas também um sentido absoluto (i.e., uma significação não  condicionada nem gerada senão por si mesma), pois cada Deus, como  plenitude e sentido absolutos, irrompe dramaticamente e comunica à vida  humana uma plenitude de sentido —benéfica ou terrível—que traz assombro  e a experiência do sublime e do horror. 
Todos esses múltiplos centros em que o Grande Cosmo se centra,  centros absolutos não condicionados nem gerados senão por si mesmos  (dada a coincidência em que a Ipseidade deles coincide com a Ipseidade de  seu(s) genitor(es)), encontram-se sob a jurisdição da Moîra que os constitui. 
A Moira, i.e., o lote ou o quinhão partilhado, é esse limite ôntico pelo  qual a essência mesma de cada Deus se delimita e se configura como tal. A  Moîra, portanto, está acima de cada Deus-centro ao mesmo tempo que é esse  próprio Deus-centro. E enquanto a Moira está acima de cada Deus-centro ela  se identifica com a vontade de Zeus, já que é a vontade de Zeus que  determinou (ou determina: aqui cessa toda compartimentação do tempo em  presente, passado e futuro) a Grande Partilha e, nessa Grande Partilha, a  constituição de cada parte, i.e., Zeus determinou (determina) o Grande  Dasmós (vv. 73-4, 112 e 885) e, no Grande Dasmós, a constituição de cada  moira. (E além de árbitro do Grande Dasmós, Zeus é o cônjuge de Eury nóme, a Grande-Partilha, e é cônjuge de Thémis, com a qual procria as  Moirai, as partes ou lotes.) 
Não adianta estabelecermos aqui uma sistematização e classificação  conceituais dos vários sentidos com os quais a palavra Moira vigorou entre  os gregos na Época Arcaica, porque na Época Arcaica em que todos esses  sentidos vigoraram eles não se deixaram, em seu vigor, nem se sistematizar 
nem se classificar conceitualmente, e essa sistematização e classificação não  vão nos auxiliar a compreender o vigor em que a Moira pôde viger e  configurar um Mundo Divino. 
Hesíodo põe as Moirai simultaneamente em duas linhagens diferentes  que, por suas naturezas e modos de procriação diversos, em nada se tocam,  em nenhum momento se miscigenam: as Moîrai são filhas da Noite  cissiparidas (vv. 217-9) e são filhas da união de Zeus e Thémis (vv. 904-6).  Com essa origem dupla e antinômica, as Moirai são o limite positivo,  constitutivo e configurativo de cada ser divino ou humano e — e por isso  mesmo — são o limite negativo, coercitivo e cancelante: elas afirmam tudo o  que um ser é e pode ser e negam tudo o que ele não é e não pode ser. A  afirmação do que é e pode ser é já em si mesma a negação do que não é nem  pode ser. A dupla filiação das Moirai indica, nos termos próprios do  pensamento mítico, que toda afirmação implica a negação (omnis affirmatio  est negatio). 
A Moira, que constitui cada ser divino ou humano e com ele coincide  enquanto é esse lote de opulência e de valor partilhado (áphenos kaì timás,  cf. v. 112), exprime-se em cada ser divino ou humano como a sua mais  autêntica e própria expressão. No entanto, a Moira, enquanto é para cada ser  o seu próprio ser, constitui para cada Ser todas as coerções e imposições que  se pode padecer e sentir como vindas disso que não se é mais por si próprio;  e a Moira é, para cada ser, tudo o que provém de seu além-ser, tudo o que  lhe é exterior e Outro. 
Na Moîra (i.e., nesse lote, nesse horizonte individual particular que se  delimita à parte da Totalidade Cósmica), afirmação e negação, liberdade e  necessidade, espontaneidade e coerção, ipseidade e alteridade coincidem e  são ao mesmo tempo no mesmo lugar sob o mesmo aspecto uma e mesma  (mia kaì he auté, segundo o vocabulário que, no século seguinte a Hesíodo,  Heráclito elabora para expressar no novo discurso inaugurado pela polis e  pelo uso do alfabeto uma das intuições fundamentais da sensibilidade  religiosa grega). 
Não há um vínculo genealógico direto entre Memória e as Moirai.  Enquanto filhas de Zeus e Thémis, as Moirai são sobrinhas (e num certo  momento enteadas) de Memória. Enquanto filhas da Noite, as Moirai são um  pólo oposto de Memória, pertencentes à raça da Negação-de-Ser. 
Assim como as Musas nascem de Memória e Zeus para serem o Canto  ontofânico mas também o meôntico Oblívio (v. 55), as Moirai de dúplice e  antinômica origem têm, também, a mesma relação ambígua com a Memória. 
As Musas trazem à luz e presentificam o que é, recolhendo-o por força  de Memória e redimindo-o das trevas obliviais do Não-Ser — mas as Musas 
também presidem ao Esquecimento e impõem-no, quando assim querem  (eut' ethélomen, v. 28). As Moirai definem e circunscrevem o ser (i.e., o  nascimento-natureza) de cada Deus e por isso mesmo impõem a cada Deus  que ele não seja o que ele não é e não pode ser. Há, portanto, um  paralelismo entre a função das Musas e a das Moirai. 
A ação das Musas na manutenção do ser de cada ser se dá na ordem da  temporalidade e da ontologia. A ação das Moirai na manutenção do ser de  cada ser se dá na ordem da espacialidade e da ontologia. Mas temporalidade  e espacialidade não têm, na Teogonia, de modo algum o caráter quantitativo  com o qual hoje entendemos essas categorias: elas aí são qualitativas e, se  não exclusivamente qualitativas, são precipuamente qualitativas. O espaço e  o tempo são sempre e sobretudo qualificados e instaurados pelo nascimento 
natureza do Deus cuja epifania os instaura. Tempo e espaço na Teogonia são  antes adjetivos que substantivos. 
Moîra e Musas presidem igualmente a função de Memória. Esta Deusa,  cujo ser (= nascimento-natureza) explicita o Ser-Fundamento da Terra-Mãe e  do Céu luminoso e fecundador, não é uma Memória individual que deva  conservar (e servir a) vicissitudes e singularidades factuais restritas à história  de um indivíduo, — é sim uma Memória cosmo-gônica, é uma Divindade  cujo ser é dado por esse mesmo mo(vi)mento da ordem ao Mundo (o  momentum cosmogônico). Assim também, Moira é o princípio individuante,  mas só o é na medida em que é um princípio mundificante. 
Pela função de Moira, o ser individual só se constitui com o constituir-se  do ser mundial: nenhum indivíduo é o que é sem que simultaneamente todos  os kósmoi da Totalidade Cósmica estejam constituídos como tal. Por isso, o  indivíduo nunca é ele mesmo num restrito insulamento, mas todo indivíduo  se constitui numa manifestação divina por força e função das potências  cosmogônicas e cosmofânicas: Moîrai e Musas, Zeus e Memória, Terra e  Céu ladeados por Kháos e Éros.
VIII  
A TEMPORALIDADE DA PRESENÇA ABSOLUTA 
As Musas, múltipla força numinosa do Cantar, mantêm o monte Hélicon  grande e divino enquanto o têm como sua morada e no vigor da nomeação  que é o Cantar (v. 2). As Musas magicamente mantêm constante o fluxo da  fonte do Cavalo, e mantêm perene o altar de Zeus, através da dança circular  em que os cantam e desse poderoso canto que dançam ao redor da fonte e do  altar do muitíssimo forte Zeus (vv. 3-4). A voz e os sons de dança das Musas  (enquanto elas ainda estão invisíveis no fundo da Noite que a tudo encobre e  oculta com muita névoa) (v. 9) quebram o silêncio da Noite meôntica com o  polifônico canto em que (res-)surgem os nomes-numes constituidores das  três fases cósmicas, i.e., da totalidade do Ser (vv. 11-21). No entanto,  embora as Musas enquanto forças ontofânicas do Cantar constituam o  próprio Fundamento da ontofania, elas têm — como qualquer outro ente que  nelas tenha seu Fundamento ontofânico — progenitores e particulares  circunstâncias e lugar de nascimento. Elas são o Fundamento de tudo e de si  mesmas e no entanto nasceram na Piéria, geradas por Memória e Zeus. 
O fato de terem nascido na Piéria e serem um determinado e situado elo  no inúmero encadeamento genealógico que elas próprias cantam (i.e.,  fundam) constitui um círculo em que nosso pensamento parece ficar  insoluvelmente preso e, assim preso, incapaz de compreender essa  circularidade temporal em que os subseqüentes geram os antecedentes e as  filhas dão fundamento e ser a seus pais. 
Apesar de geradas por Zeus após sua vitória sobre seus inimigos e após a  Grande Partilha das honras que ele preside, as Musas cantam (i.e., fundam) o  seu reinado urânico (hò d'ouranôi embasileúei, v. 71), sua vitória sobre  Crono (v. 73) e sua fixação das honras (epéphrade timás, v. 74). Ora, o  Cantar das Musas coincide com alethéa (v. 28), i.e., com a Aparição pela  qual o Ser se nega a Não-Ser; o Cantar das Musas é alethéa, os próprios  seres em sua manifestação existentiva, e são as Musas que os mantêm nessa  manifestação (a-létheia) pela qual o oblivial Não-Ser é negado. Portanto,  como é possível que as Musas tenham sido geradas por Zeus e após a  Vitória deste cantada por elas? As Musas cantam isso que cantam (tauta, v.  75) tendo o palácio Olímpio (v. 75), e ter, ékhein, em grego significa manter  (cf. lat. habere-habitare). As Musas cantam isso, no exercício mesmo de  manterem o ser das moradas em que cantam, as moradas olímpias (Olympia  dómat' ékhousai, v. 75); e cantando deleitam a grande Percepção de Zeus  dentro do Olimpo (v. 51), deleitam o Percepiente que é justamente quem e 
para quem elas cantam. (O Ser de Zeus consiste em Perceber o Cantar Que  ele e Memória geram e Que lhes dá Ser.) 
Se o Cantar é e coincide com o próprio Ser, e se o Cantar é que tem as  moradas olímpias como tem também a Tudo o que será e é e já foi, — como  é possível que não haja uma coincidência temporal entre o mo(vi)mento do  Cantar (i.e., das Musas) e o mo(vi)mento do que o Cantar a-presenta (i.e.,  presentifica)? Ou, em outras palavras: como podem as Musas terem nascido  na Piéria geradas por Zeus e serem a Força ontofânica pela qual não só Zeus  mas também a Totalidade Cósmica se dão como Zeus e como Totalidade  Cósmica? 
As Musas não nascem antes nem depois de Zeus nem sequer  simultaneamente com Zeus. Para que se desse uma dessas três possibilidades  seria necessário que houvesse um tempo absoluto, preexistente por si  mesmo, cujo decurso homogêneo e incondicionado fosse pontilhado por  acontecimentos que não pudessem afetá-lo, quaisquer que fossem as  naturezas desses acontecimentos. Somente esse tempo absoluto e  preexistente poderia estabelecer entre o nascimento das Musas e o de Zeus  uma relação de anterioridade, posterioridade ou simultaneidade; mas essa  noção de tempo como pura extensão e quantificabilidade absolutas é uma  representação elaborada por nossa cultura moderna e exclusivamente nossa,  não há isso em Hesíodo nem em nenhuma parte a não ser em nossas  convicções culturais. 
Em verdade, o mo(vi)mento do Cantar (das Musas) é analogicamente o  mo(vi)mento mesmo do que o Cantar presentifica, já que o Cantar é Ser. As  Musas nascidas na Piéria não vêm à luz de um tempo preexistente a elas e  indiferente à existência ou inexistência delas, pois não há, para Hesíodo e  sua época, essa preexistência incondicional do tempo. Assim como cantar é a  função pela qual as Musas se dão como Musas, já que Musa é essa força  divina que canta em cada cantar, — o tempo em que as Musas nascem, nasce  como a temporalidade própria das Musas e, além deste tempo qualificado e  originado pelo nascimento-natureza das próprias Musas, não há para elas  nenhum outro tempo a que a Presença absoluta dessas Deusas possa ser  referida. 
A Presença numinosa por excelência só se refere a Si Mesma, e, ao dar Se como Presença o Deus, sua Presença impõe-Se e impõe, como única  remissão e referência possível ante sua Presença, a remissão e referência a Si  Mesma. 
O tempo em que Zeus nasce e vive e reina não é senão a temporalidade  própria do nascimento-natureza de Zeus e portanto não pode preexistir nem  ultra-existir ao nascimento-natureza de Zeus.
E assim é, na Teogonia hesiódica, para cada Deus e cada evento  numinoso; e, verdadeiramente, — segundo a cosmovisão que nessa obra se  documenta, tudo é numinoso, o Universo são múltiplas e inumeráveis  manifestações do Divino. Pouco mais de um século depois de Hesíodo, Tales  de Mileto, segundo informação que nos transmite Aécio1, afirmava: tò dè  pân émpsykhon háma kai daimónon plêres, "tudo é animado e plenamente  numinoso".  
1) Kirk, G. S. e Raven, J. E. Los filósofos presocráticos. Historia crítica con selección de textos.  Trad. esp. Jesus Garcia Fernández, Madrid, Gredos, 1974, p. 141. 
O tempo como pura extensão e quantificabilidade é uma representação  elaborada por nossa cultura moderna e exclusivamente nossa, não há isso em  Hesíodo nem ela é comum a outras civilizações. É difícil para nós sequer  pensar essa concepção de tempo como mero traço cultural, pois o histórico  sem dúvida representa para nós modernos uma realidade última que não só é  o objeto constitutivo das Ciências Históricas como ainda confere  inteligibilidade a nossas vidas; através de uma participação no mo(vi)mento  histórico (no chamado "momento histórico") é que, num universo cultural  inteiramente não-sagrado e neutro, nossas vidas ganham ou podem ganhar  sentido. Em suma, para pensarmos o tempo puramente extenso e  quantificável como mero traço cultural é preciso que, por um breve  momento que seja, nos despojemos de crenças religiosas (i.e., concernentes  ao significado final da totalidade de nossa vida e do Mundo) tão  profundamente arraigadas em nós que nem sequer podemos usualmente  percebê-las como crenças (i.e., opiniões inverificáveis, aceitas por um ato de  fé subjetivo) e muito menos ver nessas crenças qualquer vínculo de  identidade com o que consideramos religioso em outras culturas ou em  nosso próprio passado cultural (já que atualmente nossa visão do mundo se  pretende rigorosamente não-religiosa na mesma medida em que se diz  científica). 
Nos vv. 116-7, que dizem: "Sim bem primeiro nasceu Caos depois  também / Terra de amplo seio", que significa este "bem primeiro" (protista)  e "depois" (épeita), se não tem o valor de uma marcação cronológica a  estabelecer uma relação de anterioridade (superlativamente definida) e de  posterioridade? — Vimos já, na análise que fizemos do significado da  palavra Kháos e de sua função nas origens mundificantes, que estas fórmulas  temporais protista e épeita são um recurso entre outros de que Hesíodo se  serve para indicar a prioridade meôntica (do Não-Ser, que se exprime na  imagem mítica do Kháos e do Tártaro) na constituição ôntica (de cada ente  em que se explicita o Ser-Fundamento da Terra, Assento irresvalável de 
tudo). 
"Bem primeiro" e "depois", ainda que sejam fórmulas temporais, não  têm nesses versos implicações de ordem cronológica. Fórmulas temporais,  elas constituem um dos recursos para se mostrar que Kháos (imagem mítica  da Negação-de-Ser e do limite-contorno anti-ôntico que circunda e configura  todo ser) tem uma envergadura e um peso mais decisivos na constituição de  cada ser (de cada indivíduo) do que o Ser-Fundamento da Terra e Éros.  (Éros: força cosmogônica e filogenética de procriação dos seres vivos, i.e.,  da vida.) 
As implicações temporais desses vv. 116-122, que desvelam as origens  primeiras do Mundo, não se encontram nestes vocábulos protista e épeita,  mas sim no fato de a nomeação da Terra implicar a nomeação de todos  (pánton, v. 118) os imortais (athanáton, v. 119) e do sagrado cume nivoso  do Olimpo (v. 119). E também no fato de a nomeação de Eros implicar a  nomeação de todos os Deuses e de todos os homens (v. 121) evocados nas  vicissitudes e tribulações de seus desígnios, e suas mentes se dobrarem à  força e fascínio de Eros acasalador e multiplicador da vida. 
O Deus (na ocorrência Terra e Eros) está, desde o momento em que está  e é em Si Mesmo, simultaneamente presente em todos os momentos de sua  existência e em todas as suas manifestações. O Deus não se manifesta antes  aqui e depois lá, mas ele é sempre o Deus sempre presente em Si Mesmo, e  suas manifestações são áreas de existência que desde sempre se encontram  entre seus atributos. Tempo e espaço não são extensões e quantificabilidades  preexistentes em si mesmas e que o Deus viesse a ocupar ao ser o Deus que  é,—mas tempo e espaço só se dão enquanto atributos deste ou daquele Deus  (e não há senão Deuses: cosmogonia é teogonia), atributos decorrentes das (e  marcados pelas) qualidades próprias do âmbito de existência deste ou  daquele Deus. 
Por isso, ao nomear Terra e Eros, o poeta tem que nomear o Olimpo, os  Deuses imortais e os homens, todos subjugados pela vocação de Amor  (Eros), — tem que nomeá-los como atributos que são da Terra e de Eros, e  porque, ao existir Terra e Eros, existem, também já e pela existência mesma  de Terra e Eros, os Deuses imortais, homens e o Olimpo, que são os mais  marcantes atributos de Terra-Mãe, assim como a força de subjugar a todos  os imortais e mortais é o mais marcante atributo de Éros lysimelés (Amor  solta-membros). 
Quanto ao espaço como um atributo decorrente das (e marcado pelas)  qualidades próprias (da Presença) do Deus, eis um exemplo simples: Piéria é  nome da região onde nascem as Musas, está ao norte do Olimpo, situada  entre esse monte numinoso e o rio Haliácmon (rio esse que é filho de 
Oceano e Téthys, a Nutriz, cf. v. 341). Ser o lugar natal das Musas é o que  antes de tudo define Piéria como lugar: — um lugar sagrado, que é por aí  ter-se dado o nascimento das Deusas. Não se trata de um espaço neutro em  que pode dar-se indiferentemente este ou aquele fato, pois aí é um lugar  numinoso, nele nascem as Musas. Neste sentido, Piéria não seria concebível  se aí não se tivesse dado o nascimento das Musas, como não é concebível o  não-nascimento das Musas, já que as Musas são as Musas. Porque aí nascem  as Musas é que Piéria e Piéria, e não Piéria é Piéria e, entre outros fatos sem  tanta importância, as Musas, aí nascem. O nascimento-natureza das Musas é  que instaura e inaugura a Piéria sagrada pelas Musas. Do mesmo modo,  Olimpo é a morada de Zeus e seus filhos. Sem Zeus o Olimpo não poderia  ser o monte Olimpo. 
A primeira interferência que se menciona de Zeus na seqüência  expositiva das genealogias é no episódio de Estige e seus filhos (vv. 383- 403). Estige, filha de Oceano como Zeus o é de Crono, é da mesma  "geração" divina que Zeus, no sentido de que ambos são entre si primos de  primeiro grau e distam igualmente duas gerações do par primordial Céu Terra. 
"No dia em que o Olímpio relampeante a todos  
"os imortais conclamou ao alto Olimpo  
 "e disse quem dos Deuses combatesse com ele os Titãs  
 "ele não o privaria dos prêmios e cada honra  
 "manteria como antes entre os Deuses imortais,  
"e que o não-honrado sob Crono e sem-prêmios  
"honra e prêmio alcançaria, como é justiça." 
(vv. 389-396)  
Nesse dia, Estige, aconselhada por Oceano, foi a primeira a apresentar-se  ante Zeus, alinhando seus quatro filhos, Zelo, Vitória, Poder e Violência nas  hostes de Zeus. Em retribuição, 
"honrou-a Zeus e supremos dons lhe deu:  
 "fez dela própria o grande juramento dos Deuses  
 "e seus filhos para sempre residirem com ele.  
"Assim para todos inteiramente como prometeu  
"cumpriu, ele próprio tem grande poder e reina ". 
(vv. 399-403)  
Já analisamos essa passagem em outro capítulo, a propósito do princípio  de concomitância não-causal que organiza os acontecimentos na teogonia  hesiódica. Importa aqui ressaltar alguns aspectos e implicações do  cumprimento por Zeus do que ele prometeu nessa conclamação.
Zeus não poderia deixar de cumprir, sem que deixasse de ser Zeus, sua  promessa a todos os demais Deuses (além de Estige), — pois, para ele,  dispensar aos aliados as honras (timaí) prometidas não é senão impor ao  Universo a sua nova Ordenação, a sua nova Partilha (a Moira que vem de  Zeus). Se Zeus não tivesse cumprido para todos inteiramente como  prometeu, ele não teria grande poder nem reinaria, pois seu grande poder e  seu reinado consistem justamente em ele ter podido cumprir o que  prometera, i.e., impor à constituição da Totalidade Cósmica a sua Ordem e a  sua Justiça, levando a cabo segundo o seu arbítrio a Grande Partilha. 
Mas para que Zeus pudesse atribuir, segundo sua justiça (thémis v. 396),  honra e prêmio (times kaì geráon, v. 396) aos que sob Crono se encontram  (então e sempre) "não-honrados" e "sem-prêmios" (átimos... ed’ agératos, v.  395), seria necessário que o poder de Zeus fosse contemporâneo da  constituição (i.e., nascimento) deste e daquele Deus que se constituem em  sua time (i.e., honra, privilégios, âmbito e ser) a partir das outorgas das timaí  por Zeus. — Assim é, efetivamente, no caso de Estige, que lhe é da mesma  "geração" (i.e., estão sincronizados numa contagem de gerações a partir da  Terra-Fundamento). Mas não é assim, não há uma "sincronização" desse  tipo, no caso dos Centímanos, dos Ciclopes, de Hécate, de Crono e de outros  Deuses. Ou seja: Zeus tem poderes sobre a constituição (i.e., nascimento natureza) de Deuses "anteriores" à constituição do próprio Zeus e de seus  poderes. 
Isto demonstra que não é possível pensarmos a Teogonia segundo a  representação de uma temporalidade sucessiva, organizada pelas relações de  anterioridade e posterioridade, seja ela do tipo linear escoativo-irreversível  (como no Cristianismo, por exemplo) ou do tipo circular repetitivo 
reversível (como na Escola Pitagórica ou em Empédocles, por exemplo).  Pensar a Teogonia segundo essas representações do tempo estranhas a ela é  reduzi-la ao absurdo, e, efetivamente, modernos intérpretes e editores de  Hesíodo se fatigam no afã de discutir a "autenticidade" hesiódica de certos  versos, pelo único motivo de que esses versos lhes parecem "contraditórios".  Não é que o sejam, mas é que estão sendo lidos e (des-)entendidos pela  óptica de concepções estranhas a eles e que os deforma. Exemplo disso são  os versos 450-3 e 465, que comentaremos a seguir. 
Dentro do contexto do Sagrado na Teogonia, anterioridade e posteridade  não são noções rigorosamente excludentes uma de outra. E aqui não se trata  de uma coincidência de contrários (coincidentia oppositorum) mas sim de  uma percepção e concepção do tempo tal que essas duas noções nem  contrárias são entre si (aliás, nem são). 
Cada Deus nasce e é num tempo que só tem origem e ser na origem e ser 
desse Deus que o instaura ao instaurar-se em seu ser. Não há um tempo  único e uniforme, duração homogênea e infinita, comum a todos os Deuses e  preexistente a eles; há tempos múltiplos e qualificados diversamente  segundo o nascimento—natureza do Deus que o instaura. O tempo em que  cada Deus vive faz parte dos atributos e atribuições desse Deus, exclusivo  dele tal como quaisquer outros de seus privilégios. O tempo em que cada  Deus vive restringe-se ao âmbito de existência desse Deus, não é anterior a  ele nem ultrapassa as fronteiras às quais o ser e privilégios desse Deus se  circunscreve. É um tempo qualificado e con-creto, i.e., nascido com esse  Deus- de cujo Ser ele depende e decorre. Não há um antes ou depois que  inter-relacione as Divindades e as hierarquize segundo uma ordenação  temporal, porque não há um tempo único que as transcenda e possa assim  reuni-las.  
Cada Deus, como Presença absoluta que é, instaura sua própria ordem  temporal. E cada uma dessas ordens temporais, como o próprio âmbito de  cada Deus, encontra suas determinações e configura-se na Grande  Conflagração na qual Zeus se faz o Supremo Soberano e seus inimigos  tornam-se prisioneiros. No conflito e na guerra é que se determina a extensão  do âmbito e dos privilégios de cada um, segundo a força de ser de cada um.  Como os Deuses são imortais, a guerra pela qual eles se configuram é  também inextinguível definitivamente; a trégua e a ordem que se impõem ao  respeito advêm da supremacia de Zeus, cujo espírito alerta e vigilante é  invencível e impõe a seus adversários as condições por ele decididas (scilicet  as Moirai que vêm de Zeus).  
Pelo fato de o tempo ser múltiplo e não único, adjetivo e não substantivo,  a inter-relação dos Deuses não é de ordem cronológica, mas crato-onto lógica: os Deuses se conexionam, se organizam e se hierarquizam segundo  & força de ser. 
O fato de Kháos ter nascido primeiríssimo (prótista, v. 116) e a Terra ter  vindo depois {épeita, v. 116) indica tão-somente que têm um valor diferente  e uma diferente função no constituir-se de cada ser, e que o valor e a função  de Kháos aí prepondera. Estas expressões temporais prótista e épeita têm um  sentido ontológico, e não cronológico: indicam a prioridade de Kháos sobre  Terra e Eros, e não a anterioridade daquele a estes, — indicam que, no  constituir-se de cada ente, o que esse ente não é ultrapassa de muito o que  ele é. Kháos é a imagem mítica da Negação-de-Ser, cuja natureza — como  vimos no capítulo cinco — se explicita em parte através de sua descendência  tanto quanto em parte se esclarece através do nome Kháos que o nomeia; o  Tártaro, seu outro nome, está no fundo, no âmago da própria Terra Fundamento-de-Tudo-e-de-Todos. E essa situação do Tártaro, tanto quanto 
esse prótista jungido à nomeação primeira de Kháos, indica igualmente que  o constituir-se de cada ente funda-se na afirmação do que ele efetivamente é  e, também e sobretudo, na negação de tudo o que ele definitivamente não é  — e esta negação (do que não se é) é muito mais vigorosa e radical do que  aquela afirmação (do que se é). E é ontologicamente e não cronologicamente  que a negação {Kháos) se impõe prótista e a afirmação (Terra) se faz épeita. 
No hino a Hécate (vv. 404-53), ao exaltar os poderes e privilégios dessa  Deusa, Hesíodo diz que  
"de quantos Deuses nasceram da Terra e do Céu  
"e receberam honra, de todos ela obteve um lote;  
"nem o Cronida a violou nem a despojou  
"do que recebeu entre os antigos Deuses Titãs,  
"e ela tem como primeiro no começo houve a partilha." 
(vv. 421-5)  
Portanto Hécate, no reinado de Crono, não se encontra no número dos  "não-honrados" e "sem-prêmios" (cf. v. 395), mas, bem ao contrário, nesse  reinado ela obtém um lote (ékhei aisan, v. 423) de quantos Titãs nascidos da  Terra e do Céu receberam honra (timèn élakhon, v. 422). E os poderes de  Hécate ainda se multiplicam, porque, no reinado de Zeus, ela não só  conserva "o que recebeu dos antigos Deuses Titãs" (v. 421), mas também  Zeus, além de honrá-la e conceder-lhe  
"esplêndidos dons, 
"ter parte na terra e no mar infecundo" 
(vv. 412-3),  
"afez nutriz de jovens que depois dela 
"com os olhos viram a luz da multividente Aurora. 
"Assim dês o começo é nutriz de jovens (...)". 
(vv. 450-2)  
Hécate só pode ter sido "nutriz de jovens" (kourotróphos) por uma  outorga de Zeus que lhe tem valido "dês o começo" (ex arkhês), i.e. desde o  seu nascimento, num universo cujos eventos não se organizam segundo o  princípio cronológico do antes-e-depois, mas segundo o princípio crato 
ontológico da força-de-ser. 
Hécate, por obra de Zeus, já nasce nutriz de jovens (v. 452); e para que  isso assim se dê, ela deve nascer na fase cósmica do reinado de Zeus (se não,  como Zeus poderia lhe outorgar tão honrosa função?). No entanto, consoante  diz o v. 414, "ela também do Céu constelado partilhou a honra" — e isto 
significa que Hécate transita para a fase cósmica em que o Céu ancestral  copula desordenada e proliferantemente com a Terra-Mãe? — Pode ser. —  De todo modo, os vv. 421-5 supracitados indicam claramente que ela vive  honrada e apanagiosamente na fase cósmica do reinado de Crono. 
Se há uma sucessão das três fases cósmicas numa ordem em que  primeiro há a do Céu primordial, depois há o kósmos de Crono e em terceiro  a realeza de Zeus, — neste caso, Hécate remonta da última (reinado de Zeus)  para a primeira (reinado do Céu) e instala-se na segunda (reinado de  Crono).—O que significa que essa "sucessão" não é uma seqüência  rigorosamente pautada pelo princípio cronológico do antes-e-depois. 
Ou, então, Hécate — que é desde seu nascimento {ex arkhês) nutriz de  jovens por outorga de Zeus — não nasce sob o reinado de Zeus; e, neste  caso, a Grande Partilha (pela qual Zeus instaura e impõe a sua Ordem e a sua  Justiça) determina e ordena fatos que, numa perspectiva cronológica pautada  pelo antes-e-depois, deveriam dar-se antes dessa mesma Grande Partilha.— 
Donde se conclui que não tem sentido nem função na Teogonia o princípio  cronológico do antes-e-depois. De fato, segundo uma leitura da Teogonia, de  acordo com esse princípio o cruel comportamento de Crono para com seus  filhos é motivado por uma decisão da vontade de um Zeus ainda por nascer.  Crono, soberano, engolia os seus filhos, tão logo nasciam, 
"pois soube da Terra e do Céu constelado  
"que lhe era destino por um filho ser submetido  
"apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus". 
(v. 463-5) 
Na Teogonia, portanto, o tempo e a temporalidade se subordinam ao  exercício dos Poderes divinos e à ação e Presença das Potestades divinas.  Para Hesíodo, o tempo não é de modo algum uma categoria absoluta e nem  sequer uma categoria. Nem há, na língua de Hesíodo, uma palavra que  designe o tempo (como também não há uma que designe o espaço) de um  modo abstrato. Nela, o tempo sempre se indica através de expressões  adverbiais, adjetivas ou verbais; o tempo não é substantivo e deve sempre  subordinar-se às exigências do Ser. E o Ser, na Teogonia, se revela como  aforça-de-ser, i.e., o poder de fazer-se Presença e de Presentificar. 
O tempo, sendo sempre con-creto, sempre se dá segundo as exigências e  implicações da Parusia. Até na sua circularidade de ano-anel (eniautós), o  tempo se dá segundo as exigências e implicações da Parusia, visto que a  circularidade do tempo enquanto ciclo das estações não é senão o modo de a 
Presentar-se de Deméter e dos demais Deuses da vegetação e das forças  telúricas.
Não há em Hesíodo uma natureza que se repita palingenesiacamente; há  sim as Presenças Múltiplas das inúmeras Forças Divinas. O mito do eterno  retorno é trabalho de um pensamento já bastante afeito à abstração; e é,  portanto, a meu ver, estranho à concretitude das percepções e concepções  hesiódicas.
IX  
A PRESENÇA DO NUME-NOME 
Enquanto Divindade, a Divindade se dá como amais forte Presença, a  Presença cuja Força de Ser origina a Si Mesma e a tudo que a Ela concerne e  se refere. A essência da Divindade é a sua própria Presença, uma Presença  que não é senão Ela Mesma, que não nos lembra senão d'Ela Mesma, não  remete nem concerne senão a Si Mesma, que nos penetra inteiramente tanto  como nos ultrapassa absolutamente, e cuja Força de Ser nos toca  inteiramente e nos plenifica segundo Sua Qualidade de bem e de graça ou de  mal, horror e desgraça, ou de ambos os dois simultaneamente, ou ainda, de  ambos os dois nas mais diversas dosagens e nuances. O Ser-Deus é o ter a  mais intensa realidade, que se revela na mais intensa, atraente, fascinante e  contagiante pletora de Ser. O essencial atributo da Divindade é ser Ela  Mesma, ou seja, o atributo da Ipseidade. 
A Presença Divina é Originante de Si Mesma—e ao mesmo tempo é a  Totalidade de Si Mesma, i.e., sua Força de Ser se faz inteiramente presente  em cada manifestação sua, por parcial que esta seja. A Divindade, cuja  essência é sua própria Presença, cujo único atributo essencial é a Ipseidade,  Se dá como a-létheia, não-esquecimento, i.e., não-ocultação. A Divindade,  portanto, em sua Presença não é senão o Manifestar-Se e Perceber-Se na  Permanência de sua Patência. E é este Perceber-se a Si Mesmo na Patência  de seu Ser que se manifesta como a múltipla e uníssona Voz das Musas, na  Força da belíssima Voz que, junto ao trono de Zeus, revela a Zeus não só o  próprio Zeus e seu trono mas também a totalidade Cósmica. 
Essa múltipla e uníssona voz das Musas a Cantar no mesmo Canto com  que o Cantor (scilicet o aedo) ao cantar presentifica a Totalidade Cósmica  ante a si mesmo e a seus ouvintes — é, para esse Cantor e seus ouvintes, a  mais forte experiência de realidade, justamente por ser, para eles, a  experiência em que Se dá a Presença Divina. 
As Deusas Musas cantam no Olimpo para deleite de Zeus o mesmo  Canto que o aedo servo das Musas, pela outorga que estas lhe fizeram,  canta—não só para o deleite dos ouvintes mortais—mas também para a  manutenção da vida, para a vivificante comunhão com o Divino, para a  transmissão do Saber e para que se possa ter visão da totalidade do Ser. Os  vv. 36-52 mostram como as Musas no Olimpo cantam para o gáudio e  volúpia (térpousin) do percepiente espírito de Zeus (mégan nóon, v. 37, Diòs  nóon, v. 51); os vv. 71-5 mostram que isso que elas aí cantam enquanto  mantêm na luz de seu Canto as moradas olímpicas (taut' ára Moûsai áeidon 
Olympia dómat' ékhousai, v. 75) coincide com isso mesmo que se canta na  Teogonia de Hesíodo. 
No Encanto do Canto—na força dessa Poesia oral arcaica—é que se  experimenta a Mais Forte Realidade, O Que Se dá como Presença Divina.  Essa experiência numinosa — i.e., essa experiência em que o Nume (=  Deus) Se dá — da linguagem e particularmente do Canto é a experiência em  que mais fortemente se vive como percepiente, com a alertada e acesa  atenção ao que se ouve e ao que se canta. A experiência numinosa do Canto  é a audição de palavras-seres, de palavras-presenças. A Palavra-Presença,  i.e., a Voz múltipla e uníssona das Musas encarnada na voz do aedo, mais do  que ouvida é percebida: é vivida e vista na arcaica concretitude em que se  reúnem e se confundem o nome e a coisa nomeada. A percepção humana  que percebe esse Canto iluminador da a-létheia e presentificador da  Presença Divina e da Totalidade Cósmica coincide com a Grande Percepção  de Zeus no Olimpo, Diòs nóon entòs Olympou (v. 51). Essa Percepção  (mégan nóon) não constitui para o homem um ato entre outros nem uma  faculdade de que o homem disponha entre outras tantas que ele exerce  habitual e trivialmente, mas essa Percepção constitui um ato pelo qual o  homem se funda e se constitui. Trata-se de uma Percepção pela qual o  homem encontra o seu próprio Fundamento, pela qual se comunica com a  própria Fonte de Vida e a partir da qual a existência humana se configura,  ganha Sentido e se vivifica. Essa Percepção imprime no coração do homem  um novo tonos, novas forças e Sentido iluminador. Nóos, "percepção", se  deixa traduzir também por "espírito", porque indica a totalidade percepiente  do espírito e da consciência; o verbo noéo, derivado de nóos, diz tanto  "perceber" e "ver" como "refletir", "meditar", "ser lúcido" e "ter sentido". 
A experiência numinosa do Canto, para quem O canta e para quem O  ouve, é — enquanto dura essa experiência em sua Numinosidade — unio  mystica, i.e., um momento em que o espírito dos mortais e o Espírito de Zeus  no Olimpo coincidem e são o mesmo e a mesma Percepção, iluminados  voluptuosamente pela Voz ontofânica das Musas a dizerem entes e eventos  presentes, futuros e passados. 
Nessa experiência pela qual o homem arcaico se integra numa realidade  absoluta que se dá como Presença Divina, esse absoluto que se determina e  se dá à experiência dos homens como Presença Divina é o Deus que canta e  ouve — o Deus que, no centro do convívio dos homens, canta a Si Mesmo e  à totalidade do Ser e percebe a Si Mesmo, a seus ouvintes (mortais e  Imortais) e à totalidade do Ser como o Canto de múltiplas e uníssonas  Musas. 
O Deus é a Oração, a Fala que vibra no Cantar, e que na experiência 

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